O artigo anterior partiu do ano de 1954, com “Tereza da Praia”, de Tom Jobim e Billy Blanco, e chegou a “Madalena”, de 1970, autoria de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza. Vamos, pois, seguir daí em frente, navegar nas ondas sinuosas das paixões por musas inspiradoras. No início de década de 70, pico da ditadura, compositores voltaram-se mais às entrelinhas para falar do cotidiano, em mistura temperada com amor e medo. As paixões eram, quando muito, inominadas e singelas, como “Moça”, de Wando (1975), feita para uma súbita caída amorosa do romântico, um amor que conheceu em Belém e viu rapidamente frustrado: “Moça / me espere amanhã / levo o meu coração / pronto pra entregar”. Voltou de Belém sozinho e a tal moça ficou com outro amor. O nome dela ficou oculto talvez por motivos de, digamos, segurança pessoal.
Caymmi, também em 1975, compôs “Modinha para Gabriela”, do papel-título da novela: “Eu nasci assim / eu cresci assim / (…) vou ser sempre assim / Gabriela”. A música também é tema de um filme de Bruno Barreto com Sônia Braga no papel principal. O nome Gabriela chegou a ser usado popularmente com referência à mulher teimosa, que não dá o braço a torcer. Ainda no mesmo ano, grande sucesso foi “Severina Xique-Xique”, de Genival Lacerda e João Gonçalves. Uma letra divertida com anedótico trocadilho: “Quem não conhece / Severina Xique-Xique / que montou uma butique / pra vida dela melhorar”. Mulher que um tal de Pedro Caroço ficou a “azarar”, daí o comentário do estribilho: “ele tá de olho / é na butique dela…”
Milton Nascimento e Fernando Brant em 1978 arrasaram com “Maria, Maria” – nada a ver com o anêmico sambinha homônimo gravado em 2008 pelo grupo de pagodeiros Molejo. A exaltação à Maria dos mineiros é uma joia preciosa de lirismo em tempos de luta pela liberdade de se expressar, de criar, de viver: “Maria, Maria / é um dom, uma certa magia / (…) Mas é preciso ter força / é preciso ter raça / é preciso ter gana, sempre”. Maria, o nome feminino mais comum do país, nessa letra, segundo Tatyana Casarino, pode ser vista como um brinde ao “povo brasileiro”, que mesmo com tantos motivos para chorar continuava sorrindo, carregando sob o sol o pesado fardo do dia após dia.
As aparentes entressafras de musas da MPB deram apenas alguns títulos que não estão à altura das melhores poesias. Dois anos depois de “Maria, Maria”, em 1980, veio a obra-prima “Luiza”, a pedido da Globo para a telenovela “Brilhante”, estrelada por Vera Fischer. Some-se o nome do autor, Tom Jobim, à qualidade artística e ao potencial de difusão da TV para se fazer um sucesso enorme. Com simplicidade e beleza, a letra é digna de figurar no rol das grandes da MPB, especialmente levando-se em conta quem as assina com sotaque de Vinicius: “Vem cá, Luiza / me dá tua mão / (…) me dá tua boca / e a rosa louca, vem…”, canção de pinceladas impressionistas que mereceu várias regravações.
Foi preciso chegar a 1983 para Chico e Edu Lobo criarem a deslumbrante “Beatriz”, música para o evento de “arte total” O Grande Circo Místico. Inspirado na obra de 45 anos antes de Jorge de Lima, O Grande Circo foi um bailado – ou melhor, um caldeirão artístico com dança, ópera, poesia e circo – que estreou no Teatro Guaíra, de Curitiba. A poesia original de Lima era uma revisitação a um fato verdadeiro ocorrido na Áustria do século 19: a paixão entre um homem de fino trato por uma linda acrobata do Grande Circo Knieps, que se apresentava pelos quatro cantos. “Beatriz”, com grandes exigências vocais, é uma música que poucos podem cantar. Entre outros intérpretes do Circo, o contemplado foi Milton Nascimento, com sua voz potente nos graves e agudos, que se sobressaiu graças à sua versatilidade e expressão como cantor. O sucesso foi tamanho que O Circo chegou a 200 apresentações, sendo que uma delas lotou o Maracanãzinho. “Olha, será que ela é moça / será que ela é triste / (…) e se eu pudesse entrar na sua vida”.
Em 1984 e 1985, apesar de belíssimas músicas, raramente se chegou às pérolas do passado com que as musas eram agraciadas. Já não agradavam aos ouvidos do povo os cantos e encantos das musas eternas. “Bete Balanço”, filme estrelado por Débora Bloch, trazia música-título de autoria de Cazuza e Frejat – com um pé nos Rolling Stones – e talvez uma exceção: “Pode seguir a tua estrela / o teu brinquedo de star / fantasiando um segredo / no ponto aonde quer chegar”. (Deixo minhas escusas se me esqueci de uma ou várias poesias). Uma vez escasseando os grandes poetas e o lirismo poético, às letras dirigidas mais para coisas cotidianas sem maiores pretensões faltava a riqueza de uma ode, um brinde de espuma do mar à mulher desejada. Talvez houvéssemos chegado a um ponto em que as musas, salvo raras exceções, já não tinham a importância do passado.
“Anna Julia” (Los Hermanos), de 1999 – elogiada por Paul Mc Cartney -, entre algumas outras, pode até ser simpática, mas não alça à altura do que fora escrito nos períodos mais férteis da ebulição cultural e romântica dos compositores brasileiros. A queda acentuada do nível dos artistas colaborou para que se abrisse pouco espaço para coisa melhor, enquanto os autores medalhões do passado se recolhiam às suas bissextas criações. Veio um funk que não é, um pagode sem samba e um sertanejo que é urbano – e que quase nada puderam contribuir para a causa.
(Título: “Ó musas, ó altos gênios, agora me ajudem” – Dante: “Divina Comédia”. Inferno, Canto II).