Contada por um maestro argentino: certo dia, cruzaram-se em um bosque um coelhinho e uma cobra. A serpente, cega, perguntou quem ele era. Brincalhão e também cego, desafiou: adivinha! A cobra, roçando nele, disse bom, você é peludo, orelhas grandes, dentões… você é um coelho! Viva, saudou o dentuço, e por sua vez falou deixe adivinhar, você é liso, não tem ouvidos, o sangue é frio. Você é um maestro! (É sempre mais divertido quando um regente conta).
Humor mais azedo, um músico bate à porta do teatro para ensaiar e pede ao zelador para abri-la. O empregado, semblante triste, disse que não haveria ensaio, o senhor não sabe que o maestro faleceu? O músico baixa a cabeça e vai-se embora, mas logo volta. O zelador pergunta: já não te disse que o maestro morreu? O músico se desculpou e foi embora. Dia seguinte, o mesmo. Atende à porta o encarregado, desta vez já enfurecido, e grita: já é a terceira vez que você vem e já chega! O músico desculpou-se e murmurou: é que você não sabe como me agrada ouvir isso! A acidez dessa anedota foi compensada pela gargalhada do próprio maestro piadista.
O veneno dos músicos não vê limites, procura logo atingir a capacidade auditiva do regente. Durante um ensaio, certo maestro não conseguia amainar a balbúrdia da orquestra. Na baderna, um percussionista arremeteu com força sua baqueta contra o enorme bumbo, causando um estrondo. Queimou o pavio do maestro, que gritou: ninguém saia daqui até que me apontem o músico e o instrumento que fez isso!
Berlioz, de quem já falamos, trouxe à sua vida trágica a anedota real. Morreu sofrendo, mas não poupou anedotas de despedida. Foi enterrado junto às suas duas esposas. E ainda conseguiu dizer que o mundo, finalmente, teria motivo para ouvir suas músicas. E tinha pressa: em seus funerais, cavalos e carruagem que transportavam o esquife dispararam em desabalada pelas vielas do cemitério. Compositor, Berlioz nunca dominou qualquer instrumento – o que não é condição “sine qua non” para compor ou reger -, apenas arranhava seu violão e gostava dos tímpanos, mas tocar “a vera”, nada.
O compositor, maestro e exímio pianista Franz Liszt (1811-1886) entrou para a história como um mago de seu instrumento. Aos nove, já se apresentara como prodígio na corte do príncipe Esterházy. Aos 11, enorme honra para um garoto superdotado, viu o gigante da música Beethoven subir ao palco para cumprimentá-lo após uma audição.
Liszt é falado também como o criador do recital, apresentação solo sobre um palco de concertos. Compôs proficuamente, editou, dirigiu, regeu e tornou-se um literato com igual habilidade. Era chamado “o Paganini do piano”, tamanhas as diabruras que fazia com os dedos nas teclas. Os seus “Estudos Transcendentais” esbarram nos limites da técnica, o que não lhe era problema. Brilhante improvisador, um dia tocava um concerto e na apresentação divagou tanto na cadência – trecho em que o solista, com a orquestra pausada, mostra sua destreza muitas vezes em improviso – que quando resolveu voltar ao “tutti” (todos), dando prosseguimento à apresentação, sinalizou ao regente uma, duas, três vezes, e o maestro não retomou a orquestra. Anedota real, fez uma pausa, e perguntou-lhe: qual é mesmo o concerto?
A interpretação e a técnica de Liszt eram assombrosas, e, como “parte de seu show”, chegava a dar uma gorjeta para moçoilas da plateia fazerem beicinhos e chorarem de emoção durante suas apresentações, serviço pelo qual, consta, pagava fielmente. Nada a dever às claques dos nossos programas de TV. Armava seu circo, que terminava sempre em espetáculo de glória e exaustivos aplausos.
Já que falamos do apelido de Liszt (“o Paganini do piano”), o genovês Niccolò Paganini (1782-1840) foi o suprassumo do virtuosismo musical. Segundo estudos mais recentes, teria nascido com a síndrome de Marfan, má-formação que faz a carreira de muitos contorcionistas de picadeiro, descoberta e estudada apenas meio século depois. Consta ainda que aquele violinista de feições cadavéricas, dedos e nariz avantajados, ficou preso por anos, acusado de matar três de suas ex-amantes. Na cadeia, tocava seu violino durante boa parte do tempo. Uma corda arrebentou, mas prosseguiu com três e depois duas. Enfim, restou-lhe uma, apenas a quarta delas, a mais grave (talvez a razão de ter escrito suas “Variações sobre um Tema de Moisés no Egito”, de Rossini, sobre uma corda só). Personificava o músico que teria feito pacto com o demo.
Livre da prisão, Paganini apresentou suas 20 variações chamadas “Le Streghe” (As Bruxas). Um crítico, perturbado pelo que vira, descreveu-o como um sujeito alucinado com chifres, roupas vermelhas e um longo rabo (à semelhança do capeta!), tocando seu violino como um bruxo demoníaco. Por essas e outras, o músico, já no leito de morte, viu o arcebispo de Nice negar-lhe a extrema-unção. Após os funerais, Paganini continuou sendo alvo de curiosidade geral. Exumado algumas vezes, em uma delas seu corpo ficara exposto, protegido por um vidro, para que a sanha mórbida e a curiosidade popular fossem saciadas. Um empresário francês chegou a oferecer a bela soma, para a época, de 30 mil francos – coisa de R$ 500 mil atuais – pelo direito de exibir os restos mortais. Em 1845 Paganini foi desenterrado pela última vez. Mesmo defunto, desfrutava de grande fama, coisa que em vida cultivava de forma espetaculosa, qualidade que soube muito bem vender, assim como sua imagem e suas concorridas apresentações.