Nós já falamos aqui das brigas que aprontavam Bach e Händel, cada um de seu lado. Mas vejamos o último não como pessoa, sim como brilhante e prolífico compositor, de quem se destaca, entre incontáveis obras, o monumental “Messias”. Foi músico contra a vontade do pai, mas o príncipe da Saxônia o fez aceitá-lo assim, diante do talento do rapaz. O jovem Händel mudou-se para a Inglaterra, onde por adaptação retirou o trema de seu sobrenome. Alguns adotam a pronúncia correta, com a contração das vogais “a” e “e” por extenso: Haendel. Eu prefiro sempre a grafia original, com o saudoso trema sobre o “a”.
Händel teria pedido ao Criador, já no leito derradeiro, que o levasse em uma sexta-feira santa. Assim foi cumprido: morreu em uma sexta da Paixão e foi enterrado como inglês honorário na abadia de Westminster, com direito a pomposo funeral. Em seu testamento, de 1750, deixou certa quantia em dinheiro para o criado Peter. Já biblioteca, instrumentos e grande parte de sua poupança ficaram para Christopher Smith. Para o primo Christian e a prima Johanna Friderika, sobrinha e alguns amigos, deixou quantias que variavam de cem a 200 libras. Teve certo conforto em vida, porém menos do que merecia por sua obra. (Aqui cabe uma dúvida levantada pelo insuspeito historiador Hans Neunzig: por que Händel teria premiado Christopher com altas benesses especiais na divisão? Por que não há registro de mulheres na vida de Händel? A pergunta soa ao leitor moderno como uma ilação e convida a possíveis visões machistas, quando não homofóbicas).
Herbert von Karajan foi um dos mais famosos regentes de todos os tempos. Desfrutou das mordomias que Händel não teve, e à frente da Filarmônica de Berlim exerceu como raros um poder quase ilimitado. Marca registrada, conduzia de olhos cerrados, em profunda introspecção. Em uma gravação para TV, pediu aos técnicos que o focalizassem de olhos fechados a maior parte do tempo, parte de sua mise-en-scène. Sentado, pernas cruzadas, teria comentado que achava simplesmente enfadonho ver músicos tocando.
Isso evoca mais anedotas: encontraram-se no Céu Toscanini, Furtwängler e Karajan, e tentavam, a todo custo, decidir no berro quem teria sido o regente número um. Furtwängler disse que seu domínio técnico e o amplo conhecimento da cultura europeia o fizeram o melhor de todos. Ao que Toscanini retrucou que não, por causa de sua precisão rítmica, fidelidade ao autor e, entre outras virtudes, porque Deus o havia feito assim. Karajan, indignado, deu um salto a esbravejou “eu não fiz ninguém não”! Por essas e outras, diz a sabedoria das anedotas, é que falam que a diferença entre Deus e um regente é que Deus não fica pensando que é um maestro!
Há também a do músico que chegou ao Inferno para cumprir sua pena, sem direito a infindáveis recursos e embargos. Percebeu que havia vários enormes caldeirões sobre um fogo intenso, onde eram cozinhados músicos de todas as especialidades. Os panelões tinham à sua frente capetas-fiscais, para evitar que algum esperto saltasse fora da água escaldante: usavam seus tridentes para que os recalcitrantes retornassem ao fundo. Mas logo o noviço percebeu que havia um caldeirão sem capeta para fiscalizar, mas algumas cabeças subiam e logo afundavam, misteriosamente. Indagou o porquê. O capeta chefe, pernas sobre um banquinho e palitando os dentes, respondeu-lhe que aquele caldeirão era o dos maestros, ele nem se preocupava. E explicou que cada vez que um deles tentava subir, outros puxavam-no por baixo. Claro, uma pilhéria sobre histórica disputa entre os grandes regentes. Se não há orquestra para todos os que querem ser músicos, existem senão raríssimas oportunidades para regentes, cálculo por demais óbvio.
Bernard Haiting, por décadas regente da famosa Gewandhaus de Amsterdam, conta que um dia, regente convidado, Karajan subira as imponentes escadas que levam ao augusto órgão de tubos, rosto erguido e nariz empinado como um monarca dirigindo-se ao seu trono, deixando escapar que aquelas escadas foram feitas para ele. Seriam elas um “gradus ad parnassum” (degraus para o paraíso)? Não se sabe se esse folclore todo é realmente verdade, mas que é um quadro da profissão, lá isso é. Diz um amigo linguista que, entre a verdade oficial e a lenda, às vezes é melhor ficarmos com a segunda.
Retornando aos velhos tempos, seu contemporâneo George Philipp Telemann (1681-1767), prolífico como boa parte de seus pares, escreveu quase uma cantata para cada domingo, 78 ofícios, 40 óperas, 44 paixões, concertos, sonatas e música de câmara, entre tantas obras. Amparados pelo poder público ou igrejas, sobrava tempo para que os compositores se dedicassem com exclusividade à sua nobre arte – além de comer, beber, amar e nada mais. E com um detalhe: sem smartphones, redes sociais, trânsito e outros males de hoje a tomar-lhes tempo.
Um pouco adiante na história, encontramos um outro grande compositor cujo volume de produção alcançou, em sua boa parte, insuperável qualidade: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), talvez o maior talento da história. Desde cedo, papai Leopold se aproveitava dos extraordinários dotes de seu moleque para explorá-los na Europa, fazendo crescer-lhe a fama no piano e no violino. Chamavam-no “o pequeno mágico”, consumação do músico extremamente precoce, sedutor, indomável e de habilidades tidas como divinas, por isso mesmo conhecido também como “o predileto dos deuses”.