Pai, amigo e herói – parte II
Termino onde parei na parte I: eventuais falhas em meus livros seriam corrigidas se fosse possível, mas tudo foi escrito com cinzel sobre pedra. Voltando ao pai, aquele estado pós-livro não fazia bem ao velho Autran. Fases deprimidas, brechas na intensa volúpia literária, a doença de escriba que o fazia escrever cartas e artigos aos borbotões, produção impressionante para quem usava uma máquina. Pouco simpático ao computador, cada vez que começava a digitar tinha de ter rápidas aulas para reaprender – menos pela modernidade do que por certo “tremor essencial” nas mãos, doença de quem escreve, explicava repetindo o médico.
Perguntei-lhe se o tempo consumido por Leon Tolstoi para escrever “Guerra e Paz” não poderia ter-lhe rendido muito mais livros se na época houvesse computadores. Ele foi categórico, nunca! “Guerra e Paz” é o que é porque foi escrito a bico de pena! Entendi que era, em tempos modernos, o que ele fazia na velha máquina, e só não escrevia com caneta porque tinha uma péssima caligrafia, que herdei dele. Tinha de pensar antes de cada tecla, cada sílaba, cada palavra. Aqueles corretivos maravilhosos não existiam ou não se dera bem com eles, acho que preferia pensar a conta-gotas enquanto escrevia. Tolstoi fora meticuloso como um relojoeiro, o bico de pena molhado com parcimônia na tinta, letras desenhadas para o texto planejado a cada letra.
Servidor público da Justiça, meu pai viu abater-lhe a maldita aposentadoria compulsória, que viria aos poucos arrefecer sua febre criativa. Com o passar dos anos foi ficando ainda mais introvertido. O caipira do sul de Minas ainda conservava aquele humor característico e frases lhe brotavam da cabeça, forma de se comunicar com o mundo exterior, a família e os já menos frequentes amigos. Sair da vida de trabalho cotidiano foi-lhe fechando o casulo, e ele parecia conformar-se com aquele fado.
Continuou escrevendo, mas já havia bons anos que evitava noites de autógrafos, seja por necessidade de isolamento, timidez ou pela dificuldade de tornar seus garranchos dedicatórias legíveis. Virou, assim, uma espécie de Henry Thoreau de Botafogo, fechado em sua cabana imaginária, um escritório cercado de livros por todos os lados, na falta da água de um lago como o do norte-americano. De seu refúgio, saía quase que apenas para comer ou dormir, o que só conseguia à custa de medicamentos. Os médicos pareciam seus reféns, as consultas eram economicamente narradas por minha mãe, companheira de vida, braço direito e às vezes também esquerdo dele. Era ela quem o acompanhava aos consultórios e escondia trancados os comprimidos, dosando-os conforme a prescrição e não segundo a cabeça já tanto quanto confusa de meu pai. Nessa fase, passou a ser usual cochilar na cadeira de balanço com um livro na mão, cena que fazia par com a gravura pendurada na parede ao seu lado, em que se via “Don Quixote” entre muitos livros e Cervantes, esparramado sob o dístico “embebeu-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. Era o retrato daquela fase paterna.
Vem-me agora à cabeça um episódio de passado bem distante, lembro-me com detalhes e conto para concluir esse breve depoimento. Entreguei ao meu pai, na hora do almoço, alguns títulos de livros pedidos pelo colégio. Ao ver um deles, arregalou os olhos, limpou a boca com o guardanapo, e, sem dizer nada, abriu a porta e desceu. Soube depois que tinha ido ao meu colégio, e exigiu que retirassem aquela publicação, seu filho não iria ler aquilo e ponto final. Se eu o vi furioso raras vezes, uma delas foi nesse dia, e ensinou-me a evitar esses novos best-sellers de ocasião. Dizia que escrever porcaria para vender ele também sabia, bastava juntar suspense, traição, escrita de gibi e uma pitada de sacanagem. Mas recusava-se a fazer isso abrindo mão da sua literatura. Best-sellers no Brasil são reles 20 mil exemplares vendidos, se passar muito além comece a desconfiar, alertou-me. Literatura em nosso país é útil para poucos, infelizmente. Para mim, que fui criado em Monte Santo está muito bom, falava.
Na vida, na escrita, na música, aprendi que temos de fazer o que muito bem definiu meu pai na sua carpintaria literária o crítico Humberto Werneck: um trabalho de formiguinha. Publicou em jornal artigo sobre um saudável bate-boca de amigos entre o Autran Dourado e o Fernando Sabino. Meu pai sempre instigou Sabino a escrever algo de maior fôlego, completo, deveria esquecer um pouco as breves crônicas e partir para o que, em música, chamamos “grande forma” – no caso da literatura, o romance. Sabino já havia feito sucesso com seu “O Encontro Marcado” (1956), mas, passaram-se 23 anos e ele continuou amarrado às suas divertidas crônicas. Provocado, o amigo vaticinou que o romance havia morrido. O velho Autran saiu-se com essa, dando aquela risada de sempre: engraçado, o Fernando, desaprendeu a nadar e quer esvaziar a piscina!
Tanto já foi escrito sobre a obra de meu pai que eu não poderia entrar nessa seara já tão desbravada sem ser um especialista estudado no ramo. Por isso, preferi mostrar o escritor como o homem Autran Dourado, com suas imperfeições e manias, seu jeito tão mineiro e caipira de ser e viver, sem desfrutar da fama que a soberba, a vaidade e a busca por exposição poderiam tê-lo proporcionado, se dado a exposição e colunas sociais. Autran Dourado foi apenas uma coisa a vida inteira: um escritor, e isso bastou para justificá-la como ideal. O resto foi amor, família e ganha-pão.