Na semana retrasada publiquei neste espaço um artigo intitulado “Língua Portuguesa, onde estás, que não respondes?” Talvez o pessoal de minha geração para trás, até um pouco mais para a frente, tenha sido um feliz aluno que teve boas aulas de português, e deve ter percebido ali uma citação a Castro Alves, em “Vozes d’África”. E, por achar a pergunta do poema tão familiar, eu não tenha indicado o autor. No poema, Alves fala de sua própria citação: “Há dois mil anos te mandei meu grito / que embalde desde então corre o infinito… / Onde estás Senhor Deus?” Alves não precisava mencionar que seu verso aludia às palavras de Cristo, já na cruz, vislumbrando sua morte iminente: “Eli, Eli, lamá sabachtháni” (Mateus, 27:46, por sua vez citando o Salmo 22 de Davi!). Alves citava Mateus, que citava Jesus, que citava Davi, e eu citando um poema do Drummond. O “Eli, Eli, lamá sabachtháni”, é “Deus, Deus, por que me abandonastes?”
Ora, no correr do texto fiz outra citação, coisa de meu costume: falo sobre o mal do século, em um contexto totalmente diverso do “Le Mal du Siècle”, de Alfred de Musset, sobre a tomada de consciência da juventude do século 19. Pode passar despercebida, mas é coisa do autor usar uma citação, seja ela oculta, explícita, óbvia, com ou sem aspas, ou, quando necessário, optar pela referência. Às vezes, o contexto e o meio em que se escreve (artigo, blog, tese, publicação científica) exigem a identificação – “Castro Alves, in Vozes d’África”, por exemplo.
Em um discurso que não estava lá entusiasmando muito o público, JK bradou “Deus poupou-me o sentimento do medo”, frase repetida literalmente mais tarde por Collor de Mello. No caso de JK, meu pai, secretário de imprensa, havia escrito a frase de efeito em um pedacinho de papel e a enfiou no bolso do paletó do presidente. Logo, sucesso! A plateia aplaudiu com entusiasmo! Meu pai apenas lembrara de cabeça Timóteo II-1:7: “Deus não nos deu o espírito do medo”.
Há citações na Bíblia, em poesia e literatura, e claro que na música. Elis Regina foi consagrada com “Eu preciso aprender a ser só”, do Marcos e Paulo Sérgio Valle – samba-canção que muitos erroneamente atribuem a Jobim, e contagiou gerações: “Sem teu amor eu não posso viver / que sem nós dois o que resta sou eu / eu assim… / tão só”. Gilberto Gil compôs “e quando escutar um samba-canção / assim com ‘Eu preciso aprender a ser só’ / reagir e ouvir o coração responder / eu preciso aprender a só ser”. A citação era tão óbvia que a referência tornou-se desnecessária, não é costume musical.
Em um trabalho acadêmico, uma tese, um TCC, convém fazer as citações mencionando-as em rodapé, no fim do texto ou na bibliografia, como manda o figurino. Se no passado Umberto Eco era a referência, com seu “Como se Faz uma Tese” (SP: Editora Perspectiva), o Brasil passou a normatizar tudo, como parte da ISO (International Organization for Standardization) e da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Um bom auxílio é um livrinho do professor Gilson Monteiro, “Guia para a Elaboração de Projetos, Trabalhos de Conclusão de Cursos, Dissertações e Teses” (SP: Edicon, 1998). Nele, o autor discorre sobre a escolha do tema, precauções com a redação, projeto de pesquisa, revisão, metodologia, referências bibliográficas, cronograma, bibliografia e seus formatos segundo as normas.
O Houaiss tem duas acepções para o termo citação. A primeira versa sobre o que escrevi até agora, com o sentido de mencionar, fazer referência a. A outra é utilizada no meio jurídico como “intimação para que alguém, em data fixada, compareça ou responda perante autoridade judiciária…”, o que o linguista Deonísio da Silva descreve como vindo do latim “citatione”, declinação de “citatio”, chamamento, intimação” (“De Onde vêm as Palavras”. RJ: Lexicon, 2014). A citação, se escrita com erros graves ou for feita de forma incorreta, pode tornar-se uma “citação circunduta” e até invalidar toda a ação. O primeiro registro de uso da palavra data da Idade Média (1322), diz Deonísio. E essa acepção é a que mais me preocupa, nos dias de hoje, pela nossa santa protetora, a Língua Portuguesa.
A grande imprensa escrita, falada, televisada e mídias diversas tem usado “citação” com sentido de “menção”, em pleno assunto judicial. Pode ser sobre alguém intimado ou tornado réu no caso da Operação Lava Jato ou aquele cujo nome simplesmente foi mencionado, erro que presta um péssimo serviço à informação, à língua portuguesa, ao direito e, claro, à imagem do cidadão inocente. O fato de alguém ter sido “citado” pode ter a gravidade de uma intimação do STF para torná-lo réu ou apenas a menção na imprensa sem nenhuma referência jurídica ao cidadão, prejudicando-lhe a vida, de seus familiares e seu trabalho. Se você esteve em uma festa de casamento e é pessoa conhecida ou pública, cuidado! Você poderá ser mencionado em uma dessas delações e a imprensa pode lhe… citar! Citado na Lava Jato! Coisa feia! Os amiguinhos de seus filhos podem fazer “bullying” na escola e você ver sua clientela encolher.
Com essa confusão, prefiro apenas mencionar pessoas e voltar às minhas citações poéticas, de prosa, discursos e afins. Concluo citando Miguel Gustavo, autor de “Café Society” (1955), grande sucesso do passado: “Enquanto a plebe rude na cidade dorme / eu ando com Jacinto que é também de Thormes / Teresas e Dolores falam bem de mim / já fui até citado / na coluna do Ibrahim”.