Uma das paixões do cinema de minha juventude, uma época tão rica culturalmente – as artes em franca explosão, a rebeldia dos jovens queria mudar o mundo com paz – foi o filme “Easy Rider”, uma aventura sobre duas motos com Peter Fonda, que já vinha de um filme sobre uma viagem alucinógena com LSD (“The Trip”, 1967) – meio apavorante pela tensão e pela sensação de se estar perdido em um labirinto. Já “Easy Rider”, com Dennis Hopper como coadjuvante, traz o jovem Fonda, filho do lendário Henry Fonda e irmão da belíssima Jane. Na trama, Fonda e Hopper correriam o longo caminho entre Los Angeles, na costa oeste dos EUA, até New Orleans, terra natal do blues e do jazz no centro-sul do país (3.030 km de estrada!). O custo total da produção foi, em dólares corrigidos para 2017, de 2,6 milhões – valor insignificante nos dias de hoje. No entanto, o sucesso foi tal que arrebatou a quantia de U$ 333,4 milhões (também corrigidos) de bilheteria nas primeiras semanas.
Talvez o maior segredo para sucesso tão estrondoso não tenham sido as motos Harley Davidson, paixão dos jovens rebeldes da Califórnia, mas principalmente a trilha sonora, que lançou o sucesso “Nascido para ser Selvagem” (“Born to be Wild”): “Ligue o seu motor / encare a estrada / procurando aventura / do jeito que ela vier / (…) tome o mundo em um abraço de amor / dispare todas as suas armas de uma vez / e… exploda no espaço”. Para descrever a cena final, só o jargão americano: dois “rednecks” (“pescoços vermelhos”, queimados pelo sol na estrada ou no trabalho braçal) em uma picape típica do interior, avistam a dupla de hippies motoqueiros. Logo, o “shotgun” (“arma de fogo”, termo usado genericamente até hoje para o passageiro, o “assento do carona”) puxa o rifle que está pendurado em um suporte por trás de sua cabeça, costume que ainda persiste na região, abre a janela e derruba os dois viajantes, em uma cena inesquecível do mestre cinegrafista húngaro László Kovács.
A trilha sonora teve ídolos da época, como Hendrix (“Easy Rider”), The Byrds (“The Ballad of Easy Rider”), de Bob Dylan, e o grupo Steppenwolf (“Born to be Wild” e “The Pusher” – “O Traficante”). A música embalou o filme e atraiu público, apesar da atuação de Fonda, sem maiores atrativos, mas com o sobrenome de seu pai ajudando. E Hopper foi um mero papel secundário na trama e sofrível ator. Quem assistiu ao filme uma vez, na época, deve ter retornado várias outras ao cinema.
Cabe aqui menção a “Noviça Rebelde” (“The Sound of Music”), ainda de 1966, premiadíssimo sucesso com Julie Andrews baseado na história da “Família Trapo” (1949), que rendeu monumentais 2,5 bilhões de dólares de hoje, logo nas primeiras semanas de exibição. Mas, claro, minha geração torceu o nariz: achávamos infantil, “coisa de maricas”, “água com açúcar”. Ironicamente, “Quanto mais Quente Melhor” (“Some Like it Hot”, de 1959) fora blindado da ácida crítica dos jovens porque contava uma história de músicos estrelada pela diva Marilyn Monroe, frente a uma banda formada por mulheres que tinha Tony Curtis e Jack Lemmon – só que travestidos. Marilyn era uma diva perfeita, idolatrada mais pelo seu charme e seu corpo do que propriamente sua atuação como atriz. Era venerada por todos, do presidente JF Kennedy ao fenômeno da cultura pop, o artista plástico Andy Warhol.
Antes de Julie e Marilyn, o histórico “Cantando na Chuva” (1952) arrebatou pela dança perfeita de Gene Kelly e Debbie Reynolds, sem falar nos passos das memoráveis longuíssimas pernas da Cid Charisse, que fez suspirar corações e imaginações. Era o apogeu dos sucessos musicais da MGM (Metro-Goldwin-Mayer), que havia eclodido com “Um Americano em Paris” (1951, com Gene Kelly), “Era uma Vez em Hollywood” (1974), e antes de tudo “O Mágico de Oz” (“The Wizard of Oz”), de 1939, com uma infantil Judy Garland, então com 17 anos, imortalizada pela interpretação de “Over the Rainbow”: “Em algum lugar / além do arco-íris / bem lá em cima / há uma terra / de que ouvi uma vez falar / em uma canção de ninar”.
Antes de o som surgir no cinema, havia legendas ou simplesmente se “falava” com imagens, a exemplo do mestre Charles Chaplin e seus grandes sucessos com Carlitos, um ícone e símbolo mundial. Lindos são “O Garoto” (1921), “O Circo” (1928) e “Tempos Modernos” (1936). Muitos músicos cresceram fazendo acompanhamento musical em cinemas de todo o mundo, sentados ao piano ou outros instrumentos e musicando as cenas conforme as imagens. Salas antigas do Rio, como o Cine Odeon, na chamada Cinelândia, hospedaram pianistas ou pequenos grupos, dando-lhes emprego.
Mas trilha sonora não foi a opção principal de todos, caso da cineasta Suzana Amaral, que filmou “A Hora da Estrela” (1985), baseada em obra de Clarice Lispector, que deu à amadora Marcélia Cartaxo o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim. Suzana filmou também um livro de meu pai, Autran Dourado: “Uma Vida em Segredo” (2001, com a estreante Sabrina Greve, melhor atriz no Festival de Brasília). Nele, muito pouca música de fundo, às vezes apenas um Sakuhashi (flauta japonesa usada na meditação Zen) suave e distante, outras um absoluto silêncio, fora os poucos diálogos. Suzana é devotada budista e adepta da meditação oriental, o que explica sua concepção. Achava que a música, quando existisse, não poderia interferir no que suas imagens queriam transmitir. Lembrei-me do que pensava Beethoven: o som é prata, e o silêncio é ouro.