“Sei que a noite inteira eu vou cantar / até segunda-feira quando volto a trabalhar / morena…” / (…) ”seu abraço meu emprego / quando chego no meu lar / morena…” O Chico sabia exaltar as morenas, e parece que sempre as preferiu na vida, desde a Marieta até as mais recentes. E louvou as morenas revolucionárias, bem ao seu feitio: “Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela / será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela/ (…) Morena, bichinha danada, minha camarada do MPLA” (pronuncia-se “Emipéla”: Movimento Popular pela Libertação de Angola). “Passando pelo regimento ela faz requebrar a sentinela”. Ou na fase mais lírica, tão mais suave e apaixonada: “Morena, dos olhos d’água / tira os seus olhos do mar. / Vem ver que a vida ainda vale / o sorriso que eu tenho / pra lhe dar”.
Que fascínio especial a morena exerce sobre poetas e compositores? E desde bem antes de José de Alencar: “Iracema, a virgem dos lábios de mel / que tinha os cabelos mais negros que as asas da graúna / e mais longos que seu talhe de palmeira”. Castro Alves também revela suas atrações pela cor, seja apenas dos cabelos, pela pele jambo, ou pela cor negra, como em sua “Morena Flor”: “Ela tem uma graça de pantera / no bem-comportado andar de menina / no molejo que vem quase se espera / que de repente lhe salte em cima”.
O grande poeta baiano faz uma alegoria com a graciosa pantera, fera felina, embora graciosa, como diz, mas veja nas entrelinhas “sempre se espera (…) lhe salte em cima”. Era uma poesia com uma sensualidade tão pura – e tão diferente dos às vezes ofensivos e grosseiros ataques de hoje. Com isso, encanta, e devia encantar quem o lia. E a morena que os poetas cantavam eram as negras, mestiças, índias ou simplesmente as de escuras melenas, que populavam o imaginário do país. O Brasil ainda não tinha a rica diversidade – miscigenada ou não – de raças como hoje, após os europeus, notadamente os alemães e italianos, trazerem ou aqui se unirem às mulheres locais, deixando filhos com traços de loiras e ruivas.
Loira e de olhos claros, só a mãe d’água, cantada por Gonçalves Dias, no passado mais distante: “… mil peixinhos brilhantes / mais luzentes e mais belos / que o ouro dos meus cabelos…” devia cantar a “mãe” da lenda. “Mais louras que as folhas crestadas / (…) enroscam-se as tranças / quais seres de luz”. Segundo o historiador Câmara Cascudo, em consonância com Basílio de Magalhães (“Folclore no Brasil”), a “mãe” original veio trazida de há muito pelos portugueses, vindo a sofrer modificações nas cores da pele e dos cabelos posteriormente.
Em nosso folclore, a exemplo de uma das muitas versões da lenda da Iara (há as morenas e até as de cabelos verdes), que se assemelha, sem ser sereia, à Lorelei, frequente no rio Reno alemão, visão que atraía os barqueiros. Esses, inebriados pela beleza nunca vista da moça e sua voz tão bela soçobravam e espatifavam seus barcos sobre as pedras (na verdade, o canto dela era o vento, uivando ao fazer um semicírculo em uma grande reentrância nos altos rochedos). Nossa Iara veio da mãe d’água, que não era sereia, e penteava suas longas melenas sentada sobre uma pedra no meio da correnteza. E arrastava os homens para o fundo do rio.
Salve a imortal Marina, do Caymmi: “Marina, Marina morena, você se pintou / Marina, você faça tudo, mas faça o favor / não pinte este rosto que eu gosto…”, e de onde mais seria Marina? Da Bahia, região morena por natureza, apesar de hoje algumas estrelas, sabe-se lá o porquê, tingirem seus cabelos de loiro para buscarem sucesso. Mas não bastariam a voz e a beleza da cor da baiana? Também nordestino, Alceu Valença nos brindou com “Morena tropicana, eu quero teu sabor / Ai! Ai! / Ioiô! / Ioiô”. Entre as musas de cabelos escuros, as nordestinas são as preferidas de artistas como Luiz Gonzaga, o “Lua”, com seu jeito inconfundível: “Vem, morena, pros meus braços / vem, morena, vem dançar / quero ver tu requebrando / quero ver tu requebrar / (…) resfulego da sanfona / inté o sol raiar”.
De Mário Lago e Aracy de Almeida brotaram letra e música desta marchinha de Carnaval, que tantos novos amores atou nos bailes da vida: “Linda morena, morena / morena que me faz penar / a lua cheia que tanto brilha / não brilha tanto quanto o teu olhar”. Jobim troca de astros, lua pelo sol, como bom ipanemense: “… mas seus olhos morenos me metem mais medo / que um raio de sol / oh, Lígia / Lígia”.
Lembro um lindo soneto do poetinha Vinicius de Moraes: “Como uma jovem morena / linda, esgalga, penumbrosa / parece a flor colhida / ainda orvalhada / justo no instante de tornar-se rosa”. Se há um louvor à morena e sua beleza, há também uma conotação sensual que é de uma singeleza infantil. E delicada como as gotas de orvalho que ele canta, tal como a poesia da pantera de Castro Alves. Joaquim Manuel de Macedo foi um dos precursores do romantismo brasileiro na literatura, com “A Moreninha”, de 1844. Texto repleto de mistério, profecias, juras de amor e simbolismos, obteve tanto sucesso que fez Joaquim desandar de seus estudos de medicina para se entregar por inteiro à literatura. O mais recente Ignácio de Loyola Brandão, paulista de Araraquara, tem na cidade natal velhas paixões. A uma delas, o trem de ferro, dedicou um livro de crônicas, e escolheu para título outra paixão, um dos melhores textos: “A Morena da Estação”.
A morena é musa dos poetas pela origem do nosso povo.