Henrique Autran Dourado
Que fascínio, que charme “gauche”, que atração é essa que a malandragem exerce sobre a nossa MPB? Será a convivência nos morros, como exaltou Jorge Ben em “Charles, Anjo 45”? “Robin Hood dos morros / rei da malandragem”. E ainda: “Então os malandros otários / deitaram na sopa”, uma verdadeira ode ao vadio, ao bandido? (Antigamente, a vadiagem era contravenção, a “dura” prendia e jogava na viatura. Lendária é a história do famoso delegado Padilha, tema de um samba de breque do malandro de “liforme” branco Kid Morengueira. Andar sem Carteira do Trabalho assinada era coisa de vadio mesmo. Imagine hoje, com o desemprego oficial nas barras dos 12%). Jorge Ben, em 1975, já havia feito uma incursão no tema em “Se Segura, Malandro”, uma breve lição de como se assumir malandro, como o malaco deve se virar com classe. Continua: “pois o malandro que é malandro não se estóra (sic) / malandro que é malandro não se devora”.
Bezerra da Silva (1927-2005) era um carioca aficionado de vários gêneros, do coco ao samba de partido alto: “Malandro é malandro, mané é mané” (por mané entenda-se otário ou trouxa, vítima do pilantra). Ele exalta as “virtudes” e dá conselhos ao bom malaco – que também atende por vagabundo –, como em “Malandro não Vacila”: “Malandro não cai, nem escorrega / malandro não dorme, nem cochila / malandro não carrega embrulho / e também não entra em fila”. Mil novecentos e oitenta e cinco foi um ano pródigo em exaltação ao pilantra: “Malandro Rife”, de Otacílio e Ari do Cavaco, gravado por Bezerra em um LP em cuja capa ele mostra um tesoitão: “O malandro de primeira / sempre foi considerado / em qualquer bocada que ele chega”. Naquele ano cantou-se até disputa de pilantragem, como em “Malandro Sou Eu”, de Arlindo Cruz, Sombrinha e Franco: “malandro que sou / eu não vou vacilar”, e lembrou até Júlio César, mandando contar ao Senado romano sobre a batalha de Zela: “Veni, vidi, vici”. Claro que com erudição “de ouvido”, pegou a frase no ar e mandou ver: “malandreando eu vim e venci”.
Bezerra da Silva fala até sobre maconha, em “Malandragem dá um Tempo”, botando ordem no terreiro: “Vou apertar / mas não vou acender agora / se segura, malandro / pra fazer a cabeça tem hora”. O samba menciona até mesmo três artigos do Código Penal: “é que o 281 foi afastado / o 16 e o 12 ficou no lugar”. (Em 1976 o Art. 281 foi revogado, e dividido entre os de nº 16, porte, e 12, tráfico de entorpecentes).
Elevando em grande estilo o nível do tema, Chico Buarque escreveu, em 1975 – que parece ter sido o ano do grande culto à classe -, o musical “Ópera do Malandro”, que ele, com aquela erudição de berço, buscou em John Gay, um dramaturgo inglês do século 18, na peça “Ópera dos Mendigos”, e, mais recente, a “Ópera dos Três Vinténs”, dos alemães Bertod Brecht e Kurt Weill. A “Ópera do Malandro” do Chico passeia entre prostitutas, um cafetão, “corretores” do bicho e um traveco, Geni – cujo nome, coincidentemente, é título de uma música que fez sucesso à parte da peça, “Geni e o Zepelim” (que parece falar de uma prostituta, e não do transformista da peça). O papel de Geni coube a Emiliano Queiroz.
É para esse bas-fond, essa marginália moderna, que Chico transporta Brecht e sua “Ópera dos Três Vinténs” (“Die Dreigroschenoper”), e abre espaço para a exploração do culto, do mito, da exaltação à malandragem, lembrando o artista plástico carioca Hélio Oiticica (1934-1980), que em uma serigrafia de 1968, feita em homenagem ao famoso bandido Cara de Cavalo, estampou: “Seja marginal, seja herói”. Daí, no musical proliferaram variações sobre o malandro, como a letra que Chico fez a seu jeito para a música de Kurt Weill: “O malandro / na dureza / senta à mesa / do café / bebe um gole / de cachaça / acha graça / e dá no pé”. Mas, pasme, em “Homenagem ao Malandro”, Chico descobre que aquela figura caricata de pilantra acabara: “Eu fui fazer um samba em homenagem / à nata da malandragem / que conheço de outros Carnavais”. Mas qual não foi sua decepção, ao ir à Lapa, gueto da malocagem carioca, e ver que “aquela tal malandragem não existe mais”! E prossegue, agora levando esse malandro “oficial’ a outras instâncias, coisa bem atual: “malandro candidato a malandro federal / (…) com retrato na coluna social / (…) com contrato, com gravata e capital” – e faz a ressalva: “que nunca se dá mal” (link ao final do artigo).
Com certeza, criar um charme especial na malandragem era algo que os franceses diriam ser “pour épater la bourgeoisie” (para chocar a burguesia). Guetos de malandros há muitos no país, apesar de a velha Lapa carioca ser um panteão dos sambistas. Era o reduto da boemia da classe C, gente como o velho e perigoso transformista Madame Satã, com longa folha corrida de processos e assassinatos – matou com um soco no fígado o grande sambista Geraldo Pereira, parceiro de Wilson Batista no clássico samba “Acertei no Milhar”.
Existe também o malandro caipira, Pedro Malazarte, um pilantra cínico importado do folclore português da Idade Média, que no Brasil virou ópera cômica de Camargo Guarnieri e Mário de Andrade, história do trapaceiro do gato de 20 contos de réis. O tema pegou Cazuza e continuou com Cassia Eller, com sua “Malandragem”: “Eu só peço a Deus / um pouco de malandragem / pois sou criança e não conheço a verdade”, mostrando em tempos mais recentes que certa dose da tal malandragem seria necessária para defendê-la das trapaças da vida.