A ideia de debruçar-me sobre dois séculos antes surgiu da lembrança do saudoso amigo e compositor Osvaldo Lacerda, que completaria 90 anos em 2017. Metódico e regrado como meu pai, nascido um ano antes, Lacerda era outro obcecado por sua obra e nada, nada mais. Mandava bilhetes, cartões e lembranças, ora dizendo que fazia duas palavras cruzadas diariamente a conselho médico, durante o desjejum, para manter a memória em bom estado, ora elogiando-me o trabalho em Tatuí empenhado pelo cururu, fenômeno musical em forma de desafio do Médio Tietê, do qual ele era grande admirador.
Serão 110 de nascimento do tieteense Mozart Camargo Guarnieri, cujo prenome não foi obra do acaso, já era um gênio predestinado desde o berço. Um de nossos mais profícuos compositores, discípulo de Mário de Andrade, coerente em sua fidelidade à música nacional mas sem deixar de explorar com extremo bom gosto a própria modernidade, Guarnieri trabalhou sempre apegado à sua raiz brasileira. Para mim – e para muitos -, foi o maior compositor do país. Um artista com um domínio da escrita musical incomparável, possuiu uma técnica completa, como a dos grandes mestres universais. Infelizmente, ainda não é reverenciado à merecida altura.
De 1917, Francisco Mignone, também regente e pianista, mestre dos ritmos brasileiros, era dono de uma impressionante técnica composicional. Estudou em Milão e teve sua ópera “O Contratador de Diamantes” estreada por ninguém menos do que o grande Richard Strauss (compositor de “Assim Falou Zaratustra”, “Don Quixote” e “Don Juan”) à frente da Filarmônica de Viena. Como ele, Lorenzo Fernandes, outro ícone brasileiro, faria 120 anos. A suíte “Reisado do Pastoreio” é sua obra mais conhecida, e o “Batuque” da peça, obra tocada em todas as orquestras do mundo, obteve elogios e reverências dos grandes Sergei Koussevitzky, da Sinfônica de Boston, e o gênio italiano da batuta, Toscanini. É um passaporte carimbado e tanto para um artista!
Fatos importantes também aconteceram há cem anos: a revolução mexicana, que trouxe uma constituição digna, a visão de Nossa Senhora a três crianças em Fátima, Portugal, por três crianças, fez daquele ano de 1917 uma data-símbolo da Igreja Católica. Na Rússia, Trotski e Lenin tomaram à força a cidade de São Petersburgo – depois, chamada Petrogrado e, durante o regime soviético, Leningrado, homenagem ao líder da revolução. Ali, iniciaram a conquista do poder. Os czares foram defenestrados, e o sonho de uma sociedade igualitária a ser instituída pela ditadura do proletariado, um dos pilares de sustentação da “sociedade sem classes” demorou vidas e décadas para ruir.
Vendo que o povo russo, em especial os campesinos, não cediam à tomada de pequenas propriedades para propriedade do estado, que controlaria a produção, houve incontáveis vítimas, um dos maiores genocídios da humanidade. Foi pelas mãos de Stalin, a partir de 1922, que foram trucidadas milhões de pessoas. A teoria de Marx e Engels, ao lado de Lenin, mostrou-se inviável na prática, cálculos e hipóteses históricos não são ciência exata. Com a morte de Stalin, chamado “guia genial dos povos”, o regime foi-se enfraquecendo, e já se esmorecia, a partir de 1956, sob o comando de Khrushchov, que iniciou o processo chamado “desestalinização”, ou seja, apagar os estragos de Stalin. Ainda assim, somente em 1988, com a memorável queda do muro de Berlim, o comunismo do “socialismo real” tomado na ponta de baionetas e sob o estouro de canhões começou a sucumbir de vez.
Há cem anos, também, nascia Jânio Quadros, folclórico e trôpego, de fala pretensamente erudita e muito pedante, com cuja renúncia à Presidência, em 1961, tentou provocar o apoio das forças políticas – e, claro, militares – para um retorno nos braços do povo, para governar com grande poder contra as “forças ocultas”, como ele dizia. Sua renúncia abriu espaço para a ascensão de seu vice, João Goulart, de inspiração sindicalista, cujo famoso discurso da Central do Brasil – hoje light, se comparado ao de governos recentes – foi o estopim esperado para o golpe que viria pouco mais de 15 dias depois, com o golpe de 1964. Recrudescido em 1968, o regime marcou algumas das páginas mais negras de nossa história.
Também em 1917 os EUA declararam guerra contra a Alemanha, dando início ao primeiro grande conflito mundial, uma guerra que desde 1914 envolvia países da Europa, o que fez avolumar-se o conflito, matando muitos milhares de pessoas e espalhando pânico, ameaçando economias e levando o mundo a enorme instabilidade.
Há 200 anos, nascia o poeta e filósofo abolicionista Henry David Thoreau, autor de teorias sobre desobediência civil. Tornou-se um eremita e morou em uma diminuta cabana em Walden Pond, Massachusetts, um belíssimo lago com parques onde eu, com meus amigos de Boston, usava sua “praia” e paraíso para lazer nos finais de semana.
Duzentos anos antes de 2017, nasceram e morreram gênios, líderes e ditadores, deflagraram-se guerras e revoluções, mas o mundo parece ainda muito longe de conquistar sua “maioridade” e juízo. Hoje há progresso tecnológico e científico crescendo em proporção geométrica, mas as conquistas democráticas e sociais parece pouco prosperarem ou, quando o fazem, é de forma bem mais lenta e sujeita a revezes e retrocessos. De 2016 não se há de esperar muitas esperanças, restando aguardar e trabalhar para que 2017 seja um ano que todos os povos merecem. Se não for, daremos uma meia-volta que atrasará o curso já tortuoso da história.