Vingança dos leitõezinhos





Nas comemorações de final de ano, frangos, patos, perus e leitões são sempre consumidos. Meu avô Ernestino dizia que, no “dia de ano”, não podia comer galinha, pato ou peru, pois essas aves “ciscam para trás”, enquanto que porcos “ciscam para frente”. Ou seja, em seu entendimento, era preciso começar o ano pensando em caminhar adiante, para o futuro, e não ficar voltando para trás, para o passado.

Então, como havia grande consumo de leitões, Marcelo Fantone resolveu criar alguns para vender para os festejos de ano novo, muito tempo atrás, mais de 20 anos. Aproveitou um chiqueiro no sítio de seu avô Felício e iniciou o seu plantel.

Uns dias antes do Réveillon, negociou a venda de 12 leitões na cidade. Devidamente abatidos e limpos. Bem cedo, foi ao sítio para abater os leitões. Estava bem escuro ainda. O radinho de pilhas tocava uma moda muito conhecida, cantada por Tonico e Tinoco: “Eu nasci naquela serra / Num ranchinho beira chão / Tudo cheio de buraco / Donde a lua fai clarão / Quando chega a madrugada / Lá no mato a passarada / Principia um baruião…”

Porém, o barulhão não vinha da passarada, mas dos pobres leitões que estavam sendo abatidos. Não economizavam berros… uma judiação.

Depois de algumas horas de trabalho, os leitões estavam prontos para serem entregues na cidade. Um belo lucro, apesar do trabalho intenso. Só para limpar o sangue e as tripas levou um tempão. Marcelo não se impressionava com o sangue dos leitões, mas tem fobia quanto a injeções ou ver sangue humano.

Logo, carregou a caminhonete, que era também de seu avô, e veio para a cidade. O rádio da camionete Chevrolet C-10, carregada de leitõezinhos, estava sintonizada na Rádio Notícias de Tatuí. Nesse horário, tocavam músicas sertanejas. Não essas pseudossertanejas que misturam ritmos norte-americanos com dor de cotovelo e traição, mas música de raiz.

Coincidentemente, assim que entrou na rodovia SP-141, Milionário e Zé Rico começaram a cantar no rádio da C-10: “Nesta longa estrada da vida / Vou correndo e não posso parar / Na esperança de ser campeão / Alcançando o primeiro lugar / Na esperança de ser campeão / Alcançando o primeiro lugar…” Com o lucro dos leitõezinhos, ia mesmo ser um campeão, pensava.

Porém, quando passava pelas proximidades da Colina das Estrelas, presenciou um grave acidente. Um motociclista bateu em um automóvel ao tentar uma ultrapassagem em local proibido. Estatelou-se no asfalto.

Marcelo e outros motoristas pararam no mesmo instante para socorrer o acidentado. Ao chegar perto, notou que uma das pálpebras do rapaz caído estava sangrando e rasgada. Com os olhos fechados, ainda aparecia o olho, tamanho era o corte sofrido. E o sangue escorria pelo rosto do motociclista desmaiado.

Ah, por quê?!?

Sentindo uma súbita tontura, Marcelo desmaiou ao lado do motociclista. Culpa de sua fobia por agulhas de injeção e aversão ao sangue. Estima-se que mais de metade das pessoas com fobia de agulhas e quase três quartos das pessoas com extrema aversão a sangue tenham histórico de desmaios nessas situações.

Até parecia uma continuidade da canção de Milionário e Zé Rico: “Mas o tempo cercou minha estrada/ E o cansaço me dominou / Minhas vistas se escureceram/ E o final da corrida chegou…” Não foi o cansaço, mas a aversão ao sangue que fez suas vistas se escurecerem.

Depois de alguns momentos desmaiado, despertou, mas em uma ambulância a caminho do pronto-socorro da Santa Casa. O enfermeiro disse:

– Fique calmo, senhor! Vocês sofreram um acidente, mas já estamos a caminho do hospital.

– Não! Eu não sofri nenhum acidente. Foi só o rapaz da moto! – Marcelo tentou explicar ao enfermeiro.

Lógico que o enfermeiro não levou em consideração, pois é comum que as pessoas que sofrem acidentes fiquem com a realidade alterada. Considerou que o paciente estava meio atrapalhado e prosseguiram até a Santa Casa.

Chegando ao pronto-socorro, foi examinado e constataram que não tinha nenhuma fratura, nenhum arranhão, e recebeu alta imediatamente.

A grande surpresa veio nesse instante. Ao levantar-se, um policial se aproximou e prendeu suas mãos com algemas, dando-lhe voz de prisão.

– Mas o que é isso? – assustado, perguntou.

Acontece que o motociclista acidentado carregava, em sua mochila, papéis de anotações de apostas e dinheiro do jogo do bicho, transportando para um bicheiro em Sorocaba.

Apesar de ser um jogo nacionalmente conhecido, o jogo do bicho é considerado uma bolsa de apostas ilegal. Foi inventado em 1892, pelo fundador e proprietário do jardim zoológico do Rio de Janeiro, barão João Batista Viana Drummond. Tem como centro do jogo números que representam diversos animais.

Não adiantou o Marcelo tentar se explicar. Foi conduzido preso à delegacia de polícia, onde tentou se justificar com os policiais de plantão. Enquanto isso, a caminhonete carregada com os leitõezinhos estava abandonada no acostamento, debaixo do sol quente do verão.

O imbróglio só foi resolvido muitas horas depois, com a presença de seu sogro, que era advogado. Quando retornou para pegar a caminhonete, com uma carona que os policiais lhe deram, os leitões não serviam mais para vender, pois o calor do sol havia sido muito intenso.

Deu de presente meia dúzia aos policiais que lhe deram uma carona e distribuiu os restantes a conhecidos. Prejuízo total.

Ah, convém lembrar que, nesse dia, os resultados do jogo do bicho, na paratodos, na extração do começo da noite e até na coruja, deu porco na cabeça. Muitos ganharam apostando no porco, menos o Marcelo.