Por mais já plenamente conhecida, efetiva e, em tese, inibidora de violência seja a Lei Maria da Penha, a realidades segue desafiadora para as mulheres Brasil afora, com números mais que preocupantes de ocorrências criminais.
Neste panorama, a violência contra as mulheres em Tatuí espelha, lamentavelmente, o observado no país, com um pico durante a pandemia de Covid-19, cujos efeitos seguem causando seguidos transtornos – e isto a considerar-se apenas os casos reportados em boletins policiais.
Como se sabe, muitas agressões sequer acabam notificadas, enquanto outras, ainda que registradas a partir de denúncias, concluem-se em arrependimento por parte das mulheres, que buscam extinguir as apurações investigativas e medidas judiciais subsequentes.
Os boletins de ocorrência registrados em Tatuí, cujo acompanhamento é realizado pelo jornal O Progresso, somando todas as naturezas de crimes, comprovam o acentuado volume da violência doméstica.
E isso a despeito do programa Patrulha da Paz, sustentado pela Guarda Civil Municipal, com suporte da Justiça Restaurativa, e do dispositivo “Botão do Pânico”, que garantem uma concreta proteção às mulheres em situação de risco.
É de se questionar, portanto, quais as razões a manter a resistência das agressões pelos homens, como, por exemplo, o de um curioso caso reportado em nota policial no final do mês passado, em que a mulher, mesmo com o Botão do Pânico, permitiu o retorno do ex-marido para casa “por livre e espontânea vontade”, conforme o BO.
Algumas respostas, que podem contribuir ainda mais com o combate à violência, podem ser encontradas em estudo recentemente divulgado, dando ênfase às chamadas “relações abusivas”.
Encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, junto ao Instituto Datafolha, a quarta edição da pesquisa “Visível e Invisível” mostrou que 27,6 milhões de brasileiras (com 16 anos ou mais) já foram vítimas de violência provocadas por parceiro íntimo ao longo dos anos, enquanto 18,6 milhões afirmaram ter sofrido algum tipo de violência ou agressão.
De acordo com Claudia Petry, pedagoga com especialização em sexologia clínica e especialista em educação para a sexualidade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/SC), um dos gatilhos do problema é justamente o relacionamento abusivo.
“Trata-se de um padrão ainda exaustivamente estudado, já que existe uma série de contextos por trás deste comportamento. Afinal, nenhuma mulher escolhe viver uma relação destrutiva”, pontua Claudia, que também é membro da SBRASH (Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana) e professora no Instituto de Parapsicologia e Ciências Mentais de Joinville (SC).
Já segundo Bárbara Bastos, sexóloga clínica e educacional pela Fasex, em uma relação saudável, ambos nutrem afeto, respeito, confiança, admiração, empatia, tolerância diante de divergências e, acima de tudo, uma comunicação eficaz e assertiva.
“Já o relacionamento abusivo desvaloriza aspectos fundamentais, como autoestima, amor-próprio, equilíbrio emocional e autoconhecimento, além de manter um vínculo totalmente nocivo”, diz Bárbara, pós-graduanda em sexualidade humana pelo Child Behavior Institute of Miami (Estados Unidos).
A psicóloga Mônica Machado, fundadora da Clínica Ame.C e pós-graduada em psicanálise e saúde mental pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein, explica que a mudança pode começar de maneira sutil, como uma crítica a um comportamento, a maneira da mulher se vestir, e vai piorando aos poucos, quando o parceiro demonstra claramente estar controlando e perseguindo a mulher, com a pretensão de coagi-la e torna-la submissa a ele.
“Esse tipo de relação resulta também na humilhação em público. Exemplo disso é a postura de reprovação do homem quando a mulher expressa suas ideias durante um encontro entre amigos ou familiares”, aponta.
“Ao notar que o outro não gostou, a pessoa se sente intimidada, envergonhada, acaba se calando e ficando apática. Pior: com medo de desagradar, ela insiste em querer justificar a todos o comportamento do outro”, acrescenta.
Para a psiquiatra Danielle H. Admoni, supervisora na residência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM) e especialista pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), neste tipo de relacionamento, crenças relacionadas à insegurança e sentimento de inferioridade podem nutrir uma percepção distorcida da relação, havendo uma excessiva idealização do parceiro, inclusive achando que “ele irá mudar”.
Segundo ela, muitas vezes, “não é fácil perceber que o relacionamento está se transformando, já que o abusador costuma usar discursos como faço isso porque me preocupo com você”, ou “estou cuidando do seu bem-estar e da sua segurança. Todo este comportamento pode ser erroneamente percebido como amor”.
Além de questões individuais da mulher, como insegurança, sentimento de inferioridade e necessidade de estar com alguém, muitos fatores contribuem para que ela permaneça em um relacionamento abusivo, indica o estudo.
“Algumas tendem a acreditar que não encontrarão outra pessoa. Há também pressões familiares ou sociais, dependência emocional, dependência financeira, medo de se expor e até culpa, pois, muitas vezes, o agressor a responsabiliza pelo comportamento manifestado por ele”, afirma Bárbara Bastos.
Quem passa por esses abusos, “finge já ter se acostumado, e prefere continuar do jeito que está do que enfrentar os desafios que virão pela frente. Essa acomodação pode estar relacionada à própria personalidade da pessoa, alguém que frequentemente se sente frágil e, mesmo sendo abusada, se sente protegida pelo outro. Daí, cria-se uma relação simbiótica, na qual um depende emocionalmente do outro, formalizando um processo de desrespeito e submissão, que é alimentado continuamente”, explica Claudia.
“Quando chega a extremos de agressão verbal e/ou física, a situação passa a demandar uma mudança comportamental urgente, a começar pela busca de um tratamento que visa a ruptura da relação simbiótica e a busca de equidade e equilíbrio. Para isso, é preciso primeiro reconhecer que é parte de uma relação de abuso”, orienta Claudia.
Já a psicóloga Mônica Machado alerta que, “a partir do momento em que a mulher consegue ter consciência da sua realidade e que precisa se libertar da visão que tem sobre amor e respeito, fica mais fácil trabalhar essa distorção em terapia, conseguindo resgatar sua integridade física, moral e psicológica”.
A psiquiatra reforça que, em caso de violência física e/ou psicológica, é imprescindível conversar com alguém de confiança e procurar ajuda profissional imediatamente.
“Muitas mulheres se sentem envergonhadas e preferem se calar. No entanto, essa ferida pode gerar um trauma e levar a transtornos mentais graves. Guardar para si é alimentar a continuidade da situação, e não pensar que alguém próxima também pode ser vítima algum dia”, finaliza Danielle Admoni.