Psicografia enviada por Paulo Muleta

Nesta história, não consegui decifrar, se foi uma visão, um sonho ou uma alucinação.

Os homens que lidam com os espíritos (menos o Jão de Deus, que de Deus não tem nada) diriam que eu poderia ser um sensitivo e, por isso, este causo seria uma psicografia enviada por alguém do além, o qual, de fato, seria o autor deste texto.

Alguns crentes já diriam que foi uma visão demoníaca, e que eu teria que assistir centenas de cultos, pagar o dízimo e mais uma comissão de 10% debaixo dos panos para me livrar da tentação.

Mas, com crença ou descrença à parte, vou contar o que aconteceu, ou melhor, da mensagem que recebi do lado de lá, e que começa assim:

“Eu, Paulo de Jesus Floriano, também chamado por  Paulo Muleta, natural do bairro Água Branca, nesta calma cidade de homens de  boa-fé – Tatuí -, residente na “Ponte Preta”, que fica ao lado do “Matão”, atualmente Nova Tatuí, onde tinha a mais cristalina vertente de água, que, canalizada, servia tanto para matar a sede dos operários da fábrica São Martinho como para suas famílias nas casinhas que ladeavam a indústria.

Estou entre os antigos funcionários dessa companhia têxtil, e como acabo de bater as botas, através deste meu ‘aparelho’, envio minha mensagem para o prefeito municipal da terra do Doce Caseiro, ou melhor, da Cidade Ternura, ou ainda, da Capital da Música… sei lá…

Excelentíssimo prefeito Orlandinho:

Fui um pobre homem que, como era chamado, já deu para perceber que tinha alguma anomalia. Não no Jesus do nome, mas na muleta do apelido.  Sempre honrado, nunca dei trabalho para as autoridades ou para a sociedade.  Como já falei, nasci, vivi e morri na Água  Branca, lá pros lados da vila Esperança, construía móveis por vocação, nunca fui janista e nem ademarista, também não fui João Lisboista e nem Junqueirista, não fiz greve nem confusão, acabei morrendo na Santa Casa, quase sem pecado e sem pesar, na santa paz do Senhor.

Todo ser humano tem na vida necessidades e privações, mas, no meu caso, apenas a esperança de gozar o sossego, a paz ou algo que não consigo descrever, mas consigo pressentir. Alguma coisa como dizem nos livros religiosos, ‘procures e acharás’. Queria achar o descanso.

Nunca fui um convicto religioso, mas pedia ao ‘Ser Supremo’ que olhasse por minha querida esposa, que passou a vida inteira passando pelas mãos de muitos médicos. Também não procurei por curandeiros e benzedeiras, acreditando apenas, que a ‘Divindade Suprema’ iria olhar por nós.

Confortava-me, às vezes, ouvir as pregações do padre Murari, que dizia coisas inspiradoras, mas que, de vez em quando, atrapalhava tudo, misturando palavras em latim e ‘galego’. Uma verdadeira salada. Mas no que dava para entender, eu procurava seguir direitinho, almejando o descanso eterno.

Pois bem, morri no dia 14 de agosto de 1969, às 14 horas, gestão Orlando Lisboa de Almeida.

Sobre os preparativos de meu sepultamento, tenho pouco a falar, não teve cerimônia, vivia com poucos parentes e amigos, um homem sem dinheiro.  Sabe, prefeito, mas tem suas vantagens: morrer na pobreza não é tão ruim, não se leva nada mesmo, fica a frustração dos poucos parentes que não vão faturar nada com a minha passagem, vão carregar o caixão e as lembranças, boas ou más, de minha existência terrena.

Senhor prefeito, estava eu, certo de ir direto para o céu, mas, devido ao descuido com algumas ruas da cidade, tive que, ao invés de ir para o céu, me apresentar no inferno.

Nesse lance, acabei por ficar mais alguns anos como alma penada, fato que contestei, achei injusto. O cemitério Cristo Rei fica na avenida João Clímaco, ou Avenida das Mangueiras, e meu caixão saiu da Ponte Preta, extremo da vila Esperança, carregado por poucos amigos e algumas pessoas de bom coração.

Mesmo sendo a última viagem, o defunto sofre pra diabos nesse percurso. O transporte me deixou todo ralado e, ao chegar diante de São Pedro, todo arrebentado, o bom e barbudo santo abriu o livrão, deu uma lida na minha história e murmurou: ‘Pelo que aqui  consta, você era um bom homem, mas, devido a essas escoriações todas pelo corpo, você deve ter se envolvido em confusões depois de morto. Vamos apurar os fatos, mas, até lá, o senhor ficará no inferno’.

Tentei contestar, mas, devido à grande intimidade que São Pedro tem com o Chefe, a sua palavra era definitiva. Fui ver o capeta, cara a cara, sem slide, retroprojetor ou tela em HD, era o bruto em carne e osso (ou chamas e enxofre).

Então, estou aqui, esperando que a burocracia divina me envie para o céu, e espero também que a burocracia terrena cuide bem das ruazinhas de minha cidade, para que outros futuros moradores da ‘chácara dos pés juntos’ não vão para o inferno”.

Paulo Muleta