Pela Educação, não dá pra calar a boca

Para que tocar em assunto espinhoso, particularmente em momento tão volátil? Seria bem mais fácil largar aqui alguns elogios à prefeita por uma obra, ou ao deputado por uma verba encaminhada, e estamos em paz. Maravilha!

No entanto, muitas vezes, é preciso focar em temas indigestos, a despeito das certas críticas e (claro) esperadas agressões virtuais dos muares sectários. Então, fazer o quê? É comentar, leitores – com o perdão de quem prefere as amenidades ou se identifica, neste caso, com a homofobia.

O tema em questão é o projeto de lei que buscava proibir a abordagem em escolas municipais do que se convencionou chamar, em nível mundial, de “identidade de gênero”. Há dois problemas, graves demais, na iniciativa, os quais não podem ser ignorados.

Primeiro, uma lei com esse propósito, fatalmente, iria impor a censura aos professores em sala de aula, tolhendo-lhes a própria liberdade de ensinar.

Como se não fosse pouco, o pretendido impedimento parte do pressuposto – equivocado e ingênuo, senão maldoso – de que os professores tanto não têm discernimento quanto às suas obrigações quanto estão mal-intencionados, predispostos a “sexualizar” crianças ou, pior, instigá-las ao homossexualismo. Absurdo!

Segundo, por mais que seja verdade a boa intenção de muitos a defender a mordaça nos professores – evocando preceitos religiosos, suposta defesa da infância ou da tal “família tradicional” –, não há como disfarçar: uma lei nesse sentido é homofóbica! Inadmissível não o ser.

A liberdade de abordar identidade de gênero junto aos jovens – é óbvio para qualquer pessoa informada – não tem qualquer pretensão insanamente libertina (até porque o corpo docente nacional, com certeza, não se formou em nenhuma escola do Marquês de Sade ou alfabetizou-se com os “catecismos’ de Carlos Zéfiro).

Na verdade, tratar sobre o assunto busca tão somente ensinar as crianças que não é legal maltratar o coleguinha apenas porque ele prefere brincar com bonecas ao invés de carrinhos – é deixar evidente que tal atitude seria até “maldade” para com quem já sofre apenas por ser “diferente”.

Por outro ângulo, é ensinar às crianças que bullying “machuca” mais na alma que no corpo. É levar os pequenos a “sentirem a dor do próximo” (é possível algo mais cristão que isto, a empatia? – considerando-se os que se apoiam em dogmas para agredir e discriminar os “diferentes”).

Portanto, a escola e, em especial, os professores precisam ser respeitados, sobretudo como profissionais abnegados, seres humanos a priori decentes e, ainda, como grandes responsáveis pela formação de futuras gerações menos ignorantes, capazes, portanto, de compartilhar o mundo de maneira mais produtiva e harmoniosa.

Por tudo isso, é de se celebrar a decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que reconheceu como inconstitucional a lei municipal 5.433, de 2 de janeiro de 2020, que proibia a distribuição, exposição e divulgação de material didático sobre identidade de gênero nas escolas de Tatuí.

A decisão, publicada na quarta-feira da semana passada, 10, aponta que a Constituição de São Paulo, no artigo 237, “condena qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica, política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe, raça ou sexo”.

A ação foi ajuizada pela Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), que alegou afronta ao princípio do pacto federativo, pois a lei dispõe sobre matéria de competência exclusiva da União, “sem que haja qualquer interesse local para a complementação por parte do município”.

A Apeoesp alegou que “a norma viola os dispositivos das Constituições Federal e estadual, bem como da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, estabelecendo restrições à liberdade dos docentes”.

Diante disso, a relatora, desembargadora Cristina Zucchi, destacou o artigo 237 da Constituição paulista, a qual determina que “a educação deve ser inspirada nos princípios de liberdade e solidariedade humana, com respeito à dignidade e liberdades fundamentais da pessoa humana, sendo condenado qualquer tratamento desigual ou preconceito”.

“No âmbito estadual paulista, ainda, foi editada a lei 10.948, de 5 de novembro de 2001, dispondo sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual, punindo-se qualquer manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual ou transgênero (artigo 1º)”, completou a magistrada.

Ela lembra que as leis municipais devem ser compatíveis com a legislação federal e estadual, vedada a elas a inovação, a alteração (pela restrição ou pela ampliação), sob pena de violação do pacto federativo, o que aconteceu em Tatuí.

A desembargadora afirmou, ainda, que “a lacuna de lei federal especificamente sobre identidade de gênero não justifica a atuação do município para proibir o tema”.

O projeto de lei para proibir o estudo sobre “ideologia de gênero” em escolas foi apresentado pelo ex-vereador Nilto José Alves, do PRTB (Partido Renovador Trabalhista Brasileiro), em 2017.

Após dois anos e 18 dias de tramitação no Legislativo, passando pelo crivo de comissões permanentes, os vereadores aprovaram o projeto de lei 134/17, em sessão extraordinária no dia 9 de dezembro de 2019.

Após essa aprovação, o documento foi encaminhado ao Executivo, para eventual sanção da prefeita Maria José Vieira de Camargo. Contudo, a matéria não foi promulgada dentro do prazo de 15 dias e acabou sancionada pelo presidente da Câmara, em 2 de janeiro de 2020.

Depois da sanção, a Apeoesp moveu uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade) para derrubar a lei. O TJ acatou a ação e a lei foi suspensa no dia 15 do mesmo mês, pela desembargadora Cristina Zucchi, em caráter liminar.

Muito além das leis, a questão maior é saber dos pais se, realmente, querem criar seus filhos como futuros reais “cidadãos”, mais tolerantes, esclarecidos e capazes de buscar soluções, diante das diferenças e dos diferentes, a partir da conciliação, da sensibilidade e do conhecimento formal.

Ou se, de outra (lamentável) forma, pretendem mesmo institucionalizar no sistema de ensino – seja municipal, estadual ou federal – o preconceito, o fanatismo extremista e, literalmente, a falta de educação.

Por ora, mais essa aberração obscurantista foi barrada pela Justiça. Mas, até quando? Como se observou no início, há momentos em que assuntos nada convenientes não podem ser ignorados, exigindo manifestações e posicionamentos claros. Portanto, pais e mães devem se sentir chamados à palavra.