“Quando pequeno, lembrava-me de tudo: do que realmente aconteceu e do que nunca acontecera. Porém, minha capacidade está decaindo, e logo vou lembrar-me apenas do que nunca acontecera”. Meu pai disse essa frase algumas vezes, algo a ver com a realidade interior e o passado que ele levava para seus livros. A frase está em “Uma Autobiografia”, do norte-americano Mark Twain (1835-1910), um dos escritores mais reverenciados da história. Seu “As Aventuras de Tom Sawyer” (1876) é um apanhado da infância, ao sabor da frase com que iniciei este artigo. Ele mesmo, personagem de sua imaginação que iria pontuar seus personagens, nas “Aventuras” apresenta Hucleberry Finn, seu amigo de traquinagens, que era uma espécie de nome de fantasia literária para seu amigo Tom Blankenship, na vida real. “As aventuras de Huckleberry Finn” (1885) se tornaria, depois, um de seus livros mais importantes. Envolto nesse misto de “fantasia real” e realidade, Mark Twain – na verdade, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens – é recomendado para todas as idades, boa leitura para os jovens de hoje. Por tão cativante, envolveu-me entre as leituras de criança, refletindo-se em minhas próprias imersões nos fatos que, em minha meninice, realmente existiram, quer tenham ou não acontecido.
Lembrei-me disso tudo porque recentemente, em uma noite de pouco sono, busquei distrair-me retirando da estante ao acaso, para folhear, “Estórias Curtas Britânicas e Americanas” (“British and American Short Stories”). “Story” significa “estória”, conto, ao passo que “history” se refere à história, como ciência, disciplina. Guimarães Rosa (1908-1967) escreveu “Primeiras Estórias” (1962) e “Estas Estórias” (1969). Eu, sem pretensão de chegar à sombra de ambos, publiquei “Pequena Estória da Música” (1992), brincadeira com o título “Pequena História da Música”, do Mário de Andrade. Bons dicionários, como o “Houaiss”, ainda conservam a palavra, enquanto outros pretendem condená-la à extinção, péssimo costume brasileiro de empobrecer nossa língua, enquanto acrescentam neologismos bobos como “deletar”.
Meia volta e ao tema, o conto “O Homem do Imposto de Renda”, de Mark Twain. Narrado na primeira pessoa, tem elementos que sugerem ao autor papel de personagem, mas não deixa clara a identidade no narrador, apesar de falar na primeira pessoa. Portanto, ao descrever, em breves linhas, a narrativa do conto sem unir autor e personagem, usarei simplesmente a inicial M., tanto faz se o próprio Mark ou uma sua criação.
Certo dia, M. recebeu a visita de um homem que se identificou como “assessor” – palavra que em inglês também quer dizer cobrador de impostos -, a quem, ora em diante, chamarei apenas “C”. Sem saber o que o C. exatamente fazia, e pensando que fosse uma espécie de negociante, M. perguntou se ele estava abrindo algum negócio na vizinhança. O diálogo desenvolveu-se com palavras curtas. C.: Ahã. M.: Como vai o comércio? C.: Bem. Hábil e ardiloso, o visitante ensaiava uma aproximação, um jogo como em “crescendo” musical nas palavras e frases da narrativa interior envolvente de Twain (que lembra Faulkner, que o considerava “o pai da literatura americana”). Não tardou, e C. logo foi abrindo as cartas: você imagina quanto eu ganhei em conversas com pessoas neste inverno e primavera? M.: dois mil dólares, talvez? (16 mil dólares, atualizados, ou R$ 56 mil, ao câmbio de hoje. A partir daqui, todas as cifras serão atualizadas pela inflação americana do período e convertidas em reais). M. logo se corrigiu: não, isso seria muito, talvez uns R$ 42 mil. C. deu boas risadas. Pois foram quase R$ 120 mil! M.: estou impressionado, você ainda diz que não é tudo?
Continuando a exibir seus rendimentos, C. disse que vendeu 95 mil cópias de seu livro “Os Inocentes no Estrangeiro”. (Agora, pausa. Este é o enigma e sua chave que não abre: trata-se do livro mais vendido do próprio Mark Twain! Seria aquele um diálogo do autor consigo mesmo?). C.: rendeu R$ 11.270.000, e a mim cabe a metade! E levantou-se, como fosse embora, entregando a M. um envelope, dizendo que ficaria feliz em poder ajudá-lo. Abrindo-o, M. viu que se tratava de sua própria declaração de renda, e C. disse que ele deveria declarar R$ 6 milhões. Pelo índice de taxação do governo (5%, na época), ele teria R$ 300 mil de imposto a pagar. Mas haveria ainda o desconto-padrão. C. colocou seus óculos, pegou uma caneta e começou a calcular as deduções para M.: perdas com acidente, fogo e outros. Prejuízos imobiliários, animais perdidos, aluguel do imóvel, reparos e melhoramentos. Ao final dessa mágica contábil, C. mostrou-lhe que seu imposto devido seria de apenas R$ 35 mil.
E não é só, continuou. Seu desconto-padrão é de R$ 30 mil, portanto o imposto a pagar, depois de todas aquelas contas, seria de apenas R$ 5 mil! (Enquanto ouvia, M., perplexo, vira o filho de C. sacar uma nota de R$ 50 do bolso, e logo guardá-la. Teve certeza de que o menino, se perguntado, saberia mentir sobre o quanto ganhou). Você trabalha com essas tantas “deduções” todos os anos, senhor? Claro, caso contrário eu seria “um pobre mendigo sustentando este governo perverso, cruel e pavoroso”, respondeu-lhe C., que M. já achava ser o homem mais rico da cidade. Resolvido, M. foi à agência da Receita e atestou a veracidade de “mentira após mentira, truque após truque, maldade após maldade”, até sua alma ficar “encoberta por polegadas e polegadas de falsas declarações, e seu respeito próprio desaparecer para todo o sempre”.