Há muitos anos, sai de Tatuí, durante a Semana Santa, uma grande romaria em direção à cidade de Pirapora do Bom Jesus – uma verdadeira tradição. Essa romaria, tão antiga e que teve seu início com o saudoso Itatiba, continua até hoje, comandada pelos filhos e muitos outros fiéis.
Todos os anos, após uma missa, os romeiros saem a pé em direção à Igreja de Pirapora, passando por Boituva, Porto Feliz, Itu, Cabreúva e, finalmente, a Igreja de Pirapora, onde são recebidos também com uma missa.
Acontece que muitas pessoas que não são exatamente religiosas ou devotas gostam de compartilhar dessa aventura de fé. E foi numa dessas duras viagens que o Carlão Rodrigues, com uma moto novinha, iria junto para agradecer essa sua aquisição, já que, por muitos anos, só andava de lambreta.
A viagem, tirando a canseira, é uma maravilha, pois a estrada margeia o rio Tietê, com inesperadas e belas cachoeiras, oferecendo beleza impar aos viajantes – além, é claro, de longos trechos do percurso serem protegidos por mata nativa.
Depois da missa, todos vão até a sala dos milagres – faz parte da tradição – e, aí sim, ficam livres para passear, descansar ou ir para restaurantes e até alguns barzinhos.
Junto com o Carlão, fomos até o conhecido bar do Nico, santuário etílico, que fica bem ao lado da Igreja. Depois de comer algumas sardinhas assadas, acompanhadas de um goró e muitas cervejas, resolvemos perambular pelas imediações. Foi quando notamos a presença de um senhorzinho, sentado quietinho num canto, com o olho comprido em direção às latinhas que tínhamos nas mãos.
Oferecemos uma a ele, que a detonou num só gole. Limpou o beiço com as mangas da camisa e agradeceu. Disse, então, que a concorrência estava grande, era gente pedindo pra todos os lados. Tinha pedinte pedindo para pedinte, uma zorra total.
Sentamos ao lado do simpático senhor e puxamos assunto, e, para estimulá-lo, demos a ele mais uma cervejinha. Na segunda latinha e sem comer, o álcool solta a língua, e daí ele soltou o verbo. Disse que era pintor, mas chegou a ser cego – ceguinho de tudo!
– Mas, o senhor está nos vendo, certo? Foi algum milagre? – perguntamos.
– Na verdade, existem cegos de nascença, de doença ou de acidente, mas a minha cegueira era de necessidade – disse o homem com os olhos arregalados.
Pior cego é aquele que não quer ver, pensamos, mas aquele não era o caso, ele teria a sua própria história.
Seu Osmar – esse era seu nome – tinha carteirinha e tudo mais, e havia começado a sua carreira de cego em frente à Igreja N. S. da Conceição, em Barueri. Um verdadeiro artista, meio na contramão da lei, mas era um artista.
Perguntamos pra ele se fazia muito tempo que era cego.
– Na verdade, é que comecei perneta, depois é que fiquei cego – respondeu ele.
Nesse ponto da história, ele mostrou a latinha vazia, e como para bom entendedor, meia lata vazia, ou melhor, lata inteira vazia basta, convidados o avô da turma da Petrobras para encostar a barriga no balcão de um barzinho que estava logo ali na frente e continuar a conversa.
Carlão não sentou, esparramou-se numa cadeira e, com a mão, deu um sinal para o balconista, pedindo uma talagada da boa.
Continuando a conversa, o seu Osmar contou que começara sua aventura como perneta, técnica que aprendera com um jovem circense. Vestia uma calça bem larga, onde era fácil esconder uma das pernas encolhida, e mais alguns pequenos detalhes ele se transformava num perfeito deficiente. Disse, ainda, que tudo ia muito bem até que, num certo dia, apareceu um policial que implicou com ele.
– Policial chato, daqueles que querem fazer cumprir a lei – afirmou ele.
Certo dia, lá estava ele e mais alguns pedintes na porta da igreja, quando, de repente, não mais que de repente, encosta o camburão e desce o tal policial e outros companheiros.
Foi um corre-corre dos diabos, um pra lá e outros pra cá. Infelizmente, o seu Osmar não pôde correr. Com a perna dobrada, uma falsa perna de pau, foi impossível correr. Acabou em cana.
– Foi aí, depois de uns tempos meditando no xadrez, logo que saí, achei melhor virar cego – disse.
Só que, dessa vez, seria um verdadeiro profissional, ficou dias e dias andando pela casa com um lenço cobrindo os olhos, tateando, lapidando, treinando, até chegar ao ponto que pessoas podiam fazer o que quisessem ao seu lado: barulho, gritaria, bufando, o que fosse, que ele ficava olhando pro nada, “olhando” para um ponto vago no espaço.
– Fiquei um cego tão treinado que um dia aconteceu um acidente na rua em que eu estava plantado: um caminhão bateu num carro e, depois, derrubou toda carga de cerveja no chão. Foi aquele corre-corre, gente e garrafas pra todo lado, e eu ali, impávido e parado – disse ele, todo confiante.
Ao contar isso, seus olhos brilharam, seu rosto se iluminou, parecia um velho jogador de futebol que contava ao seu neto como realizara o gol do título.
– E como cego, já foi preso? – perguntamos.
– Nunquinha, cego que é cego vê de longe, assim que os “home” apareciam, eu saia de mansinho – confessou.
– E porque não é mais cego? – interrogamos.
– É que a concorrência ficou muito grande. No meu tempo, as mulheres não levavam seus filhos para pedirem esmolas nos semáforos; hoje, tem as grávidas de araque ou não. Os ceguinhos foram ficando para trás, a polícia perdeu o controle da situação, a população de pedintes mais que dobrou, a desorganização administrativa dos esmoleiros foi total, e tudo isso me levou a abandonar a profissão. E olhe que eu era um cego bastante profissional – disse Seu Osmar, que ainda resmungou:
– Num país como o nosso, pedir esmolas é viver na miséria, e um dia – profetizou – vai ter mais gente pedindo esmolas do que dando!
Surpresos e pensativos, resolvemos voltar para a igreja.
Demos um abraço no seu Osmar e, antes de irmos embora, deixamos mais uma dúzia de cervejas pagas para ele. E, sem olhar para trás, concluímos:
– Seu Osmar não era cego, era profeta!