O canto de Angelica, que encantou Tatuí­





Se houvesse uma receita para se criar uma grande cantora lírica, em primeiro lugar estaria a beleza do timbre de voz, a projeção, a clareza na pronúncia em diversos idiomas e uma versátil extensão vocal, sem exageros que possam comprometer um conjunto musical admirável. Em segundo, a presença no palco, quase-sinônimo de carisma: cada movimento, cada gesto e movimento que, por menores ou suaves que sejam, emolduram, nos mínimos detalhes, o quadro da cena musical. Isso já bastaria para uma grande cantora.

No caso deste artigo, falo de uma “soprano spinto”, expressão que em italiano se refere a uma voz lírica de contornos dramáticos como quer o papel de Desdêmona da ópera “Otelo”, de Verdi, por exemplo. Contudo, a quem vou me referir neste artigo, há ainda um brilho, uma beleza ímpar, um olhar, um corpo esguio e alto em um vestido de corte perfeito e cabelos cuidadosamente arrumados que ora remetem a uma modelo, ora trazem um quê de gueixa.

Angelica de la Riva tem tudo isso e um pouco mais. Nascida no Brasil, de pai cubano e mãe mineira, é uma verdadeira diva – título empregado apenas para as estrelas do canto com grandes predicados (Diva, na mitologia grega, significava deusa ou divindade). De seu pai, cantor de horas vagas, parece ter recebido a inspiração para sua arte. Porém, antes disso, parte deve sua formação completa também à natação, polo, remo, teatro e dança, além de três anos de curso de direito, até se lançar de vez a uma carreira internacional (que já é bastante sólida) nesses últimos 15 anos, altos voos para uma jovem cantora. Completam a personalidade de “la Riva” a pessoa culta e extremamente bem informada em diversas áreas, inclusive na política brasileira, e o de sua adoção há 15 anos, os Estados Unidos, assim como a política internacional, assuntos entre os quais trafega com igual desenvoltura.

Ao jantar, após o recital, Angelica me pediu, com a simplicidade que lhe é peculiar, que comentasse sobre o que considerei o ponto alto e o ponto mais baixo da apresentação, promessa que cumprirei neste espaço. Começo, claro, pelo ponto mais alto da performance. Com pouco espaço, prefiro pegar um “cavalo de batalha” das sopranos como exemplo, pois deve-se sempre executar as peças chamadas “de confronto”, que dão margem a comparações – o que não farei aqui entre ela em termos relativos com uma ou outra artista, mas de maneira absoluta, sua única pessoa. Trata-se da “Bachianas Brasileiras no 5”, para soprano e orquestra de violoncelos, em arranjo executado magistralmente por nossa pianista Miriam Braga e os competentíssimos Elen Ramos e Tulio Pires nos violoncelos.

Uma performance exemplar de uma peça que está no repertório de dez entre dez sopranos é um desafio, pois cada uma deve demonstrar qualidades diferenciais. A voz clara, limpa, audível em todo o auditório sem vislumbre de esforço já é um bom começo. Na obra, Angelica não se dobrou ao rigor rítmico imposto pelos compassos “quebrados” ponteados pelos violoncelos à maneira de violões que marcam a escrita de Villa-Lobos na obra – rigidez que é vício de muitas interpretações corriqueiras. A cantora tomou suas liberdades interpretativas mesmo sobre o texto musical da “Cantilena” – o qual pode induzir alguma cantora mais insegura a uma certa rigidez rítmica. Angelica, ao contrário, demonstrou um domínio ímpar da partitura, conjugado a um entrosamento perfeito com o piano maleável e os ouvidos sensíveis de Miriam Braga. (Após apenas três dias de poucos ensaios, talvez alguém pudesse pensar que o duo se apresenta junto há muito tempo). A cantora imprimiu beleza musical à repetição do tema inicial à “boca chiusa” – literalmente, boca fechada -, sem usar de artifícios para camuflar a dificuldade da técnica exatamente como pedida pelo compositor, usando exclusivamente a face e a projeção do som nasal com habilidade incomum. Por fim, encurto minha opinião, o lá agudo final do movimento, ainda “a boca chiusa”, ainda sob o pleno domínio técnico e musical de Angelica.

Houve espaço para Massenet, Richard Strauss, Carlos Gomes (uma pérola), Gounod, Torroba e Lehar, impecáveis. Agora, peço licença para um breve intervalo no texto para uma surpresa do evento: convidado, sobe ao palco o comendador Colomo do Couto, presidente da Sbace (Sociedade Brasileira de Artes, Ciência e Educação) para a outorga pública da medalha de mérito e certificado Carlos Gomes, que Angelica agradeceu com sua cativante simplicidade. Premiou-se a alta qualidade artística e a divulgação que ela tem feito da música ibero-latino americana pelos quatro cantos do mundo, em salas como os prestigiosos Carnegie e Avery Fisher Hall, de NY, e em sete países diferentes em que atuará nos meses finais do ano, tal fosse uma embaixadora da música brasileira.

Para concluir, cumpre-me citar, infelizmente mas como prometi, o ponto mais baixo da apresentação. Após receber um arranjo de rosas vermelho colômbia na exata tonalidade de seu elegante vestido, uma vez encerrada a apresentação, e como retribuição pelo trabalho conjunto com Miriam Braga, Angelica oferece à colega pianista uma das flores, preciosamente escolhida. Ao sair do palco, ramalhete consigo, deixou uma plateia de pé e alguns dos presentes visivelmente emocionados. Aguardamos agora o “ritornelo”, a repetição, no jargão musical: Angelica prometeu vários retornos a Tatuí, quando sua agenda a permitir. Os 60 anos do Conservatório de Tatuí foram coroados com uma performance de extraordinária magnitude.