Nos anos 50





Quando criança, ia quase que diariamente à serraria de meu pai, fundada pelo meu avô. A Serraria São Francisco Ltda. Ficava à rua do Cruzeiro, no quarteirão que hoje está o Posto Quatrocentão. Ocupava quase que o quarteirão inteiro e, com exceção de sua frente para essa rua, fechada com um gradil, era cercada por um denso bambuzal.

Na serraria havia diversos barracões. Cada qual com uma finalidade. Um deles para desdobrar toras em pranchas, outro para desdobrar as pranchas em vigas, caibros e ripas e, ainda, em tábuas de soalho, forro ou lambril, carpintaria, almoxarifado, depósitos, garagem e, claro, escritório. Era uma indústria completa, nos moldes antigos, certamente, pois iniciou suas atividades ainda nos anos 1910.

Ao redor de todos os barracões havia sarjeta, para direcionar a água das chuvas. Em frente à garagem onde guardavam os caminhões Thornycroft, além da sarjeta, tinha um pequeno bueiro para escoar as águas sem empoçar.

Certa manhã, um tanto fria, estando por lá, vi saindo da entrada do bueiro uma fumacinha. Coisa normal em dias frios é aparecer essa condensação da umidade, pois a temperatura interna do bueiro é mais quente que a superfície. É aquela “fumacinha” igual a da nossa respiração em dias frios. O bafo quente…

Como eu não entendi aquilo, perguntei ao meu tio José, o porquê da fumaça. A explicação dele?

– Ah, essa fumaça é porque a Cuca está cozinhando lá embaixo! – disse, rindo, para me assustar.

Meu tio era extremamente forte. Levantava pesos enormes. Não se cansava com facilidade. O apelido dele era Zé Boi, mas ninguém teve coragem de chamá-lo assim pessoalmente. Para se ter uma ideia, ele ia da cidade até o bairro da Americana carregando nas costas o motor de popa que usava em seu bote para pescar no rio Sorocaba.

Era também um cara muito inteligente, muito mesmo, mas com bastante dificuldade em se relacionar com pessoas. Bravo, não aceitava desaforos. Tinha, por isso, poucos amigos. Entretanto tinha um senso de humor apurado. Era comum ouvir gargalhadas enormes quando estava conversando com amigos ou com meu pai.

O pátio da serraria era aonde as toras iam sendo depositadas antes de passar pela serra vertical, que as desdobrava em pranchas. Muitas e muitas toras, da região e até de longe, principalmente do norte do Paraná foram cortadas ali. Eu gostava de brincar pulando de toras em toras.

Nesse local havia um gramado, mais ou menos bem cuidado. Não deixavam o mato prevalecer, mas a grama crescia mais alta aqui, menos ali. Era bastante irregular. A cidade acabava por ali e era muito comum surgir cobras no terreno da serraria. Certo dia, os empregados que cortavam o mato encontraram e mataram uma urutu cruzeiro. E essa foi apenas uma das que guardei na memória.

Um belo dia, tio Zé estava consertando algo em um dos Thornycroft bem ali, sobre aquele gramado. De repente, derrubou um parafuso na grama. Procura aqui, procura ali. Pediu para eu ajudá-lo a procurar. Mexe e remexe na grama mais próxima do caminhão e nada. Não aparecia o tal parafuso.

Mas pediu para eu esperar. Foi até a carpintaria, pegou um sarrafo qualquer e fez uma ponta na serra de fita. Voltou com o sarrafo e uma marreta. Deu umas marretadas e enterrou um pouco esse pedaço de madeira com ponta. Daí falou:

– Procura agora! – disse, parado ao lado da estaca e segurando a marreta.

Procurei, procurei e nada. Não achei. Então, tio Zé, deu mais umas marretadas, enterrando mais um pouco o sarrafo, dizendo:

– Procure de novo agora! – insistiu.

Estranhei aquilo, mas procurei novamente o danado parafuso. Nada de encontrar.

– Então espere! – ele disse, enquanto dava mais umas marretadas do tal pedaço de madeira.

Não me aguentei e perguntei porque ele fazia aquilo: enterrar a estaca aos poucos e pedir para eu procurar o parafuso.

– Eu estou enterrando esta estaca até acertar o traseiro do diabo. Quando eu cutucar o coisa-ruim ele me devolve o parafuso perdido! – explicou, gargalhando com a minha perplexidade.

Apesar de ser uma pessoa de difícil relacionamento, era um cavalheiro às antigas com mulheres e extremamente fiel aos poucos amigos que tinha, ao mesmo tempo em que se mostrava irreconciliável aos que considerava inimigos.

Neste mês de setembro, se vivo fosse, estaria completando 90 anos. Ainda não é centenário, como os que foram lembrados em uma semana anterior, mas mesmo assim fica aqui este registro.