Que música eletrônica que nada, mano!





Meninos, eu vi! Foi no final dos anos 1960, na General Severiano, onde eu fazia natação na piscina de água salgada e às vezes batia uma bola no campinho, na saída do estádio do Botafogo. Era o time do meu coração, e podíamos ver de perto nossos ídolos: Jairzinho, Manga, Gérson, no gramado onde já havia jogado o insuperável Garrincha. Na saída do treino, os campeões autografavam, e às vezes até trocavam uma ou duas bolas no nosso campinho. Manga, um gigante brincalhão, pegava no gol por alguns minutos e nos dava a glória de deixar passar alguma bola, para o autor da façanha contar pelo resto da vida que havia cravado um gol no supergoleiro! Uma vez o acompanhamos até a rua, ele com uma mala de plástico, fazendo sinal para o táxi – sim, leitor, campeão pegava táxi! Ver os campeões de perto, meu Botafogo, no estádio perto de casa era tudo de bom. E Botafogo nos era glorioso até mesmo na derrota!

 

Há alguns dias revi o filme do cineasta Joaquim Pedro de Andrade (célebre também por “Macunaíma”), em cujo título me inspirei para encimar artigo. Um relato comovente, bem além da narrativa documentária, um curta sobre a história de quem foi herói e ídolo até morrer, em 1983. Criado em Pau Grande, perto de Petrópolis, estado do Rio, Mané (um dos muitos apelidos do jogador) foi um feliz acaso espontâneo da pobreza. Naquela cidadezinha de 3.000 habitantes praticamente havia apenas um serviço: a tecelagem, onde Garrincha trabalhou com seus amigos, de quem nunca se separou. E com ele “a classe operária foi ao paraíso” (lembrando um filme italiano do passado). Já famoso, Mané pegava o trem no Rio – de novo, leitor, campeão pegava trem! – para bater uma bolinha na várzea, como sempre fez desde criança. Na amizade, o time perdedor pagava a cerveja para o ganhador. (E era penalizado quem deixava a bola cair pela beirada do morro).

 

Meio preguiçoso, mesmo com o barulho das máquinas Mané conseguia arriscar um cochilo em serviço, razão pela qual o patrão queria mandá-lo embora. Porém, em cada tentativa  o chefe tinha que retroceder, pois o rapaz já despontava como promessa no futebol. Quando foi para o Rio, em 1953, Mané largou o clube Serrano (já tinha saído do Pau Grande) para juntar-se à esquadra botafoguense. Envaidecido, o dono da tecelagem colocou um retrato enorme do jogador na sala, bem ao lado do Getúlio Vargas. E Garrincha sempre retornava do Rio, humilde, para ver as sete filhas e a mulher, além, claro, dos amigos do peito.

 

Alegria do Povo, Anjo de Pernas Tortas e O Rei dos Reis foram expressões talhadas para o jogador maior brasileiro. Sim, foi ele o homem que ergueu Pelé – era ele quem desmontava defesas adversárias, preparava jogadas e entregava a bola para o santista chutar em gol. Na copa de 1962, Pelé sofrera uma grave distensão na virilha; Garrincha ficou sozinho, estrela solitária, e, desobedecendo ao técnico Aymoré – e com 39 graus de febre -, roubou o jogo, fez misérias, driblou, fintou, e fez bola passar por entre pernas de jogador adversário. Fazia gols impossíveis, como aquele do lado da trave do adversário, e ainda com um jogador no caminho da bola. Gozador e irreverente, em uma semifinal deu um pontapezinho na bunda de um jogador chileno, e quase foi expulso da Copa. Expulso, saiu de campo de cabeça erguida, sereno,  e por isso recebeu na cabeça uma pedrada vinda da arquibancada ao invés de correr em ziguezague, como diriam depois os críticos palpiteiros. Sem Pelé, Garrincha tornou-se rei por completo, corpo e alma do time. Assumiu a liderança, para gáudio da torcida de olhos arregalados e apaixonados, como mostram as imagens cinematográficas bem selecionadas, uma multidão de fãs nervosos e muitos desdentados.

 

O grande dramaturgo, cronista e futebolista Nélson Rodrigues – o estádio do Maracanã leva o nome de seu irmão, Mário Filho -, que era cunhador de frases de efeito, vaticinou: “Se todos os 75 milhões de brasileiros fossem Garrinchas, o Brasil seria maior do que a Rússia e os Estados Unidos”. Interpreto a frase de Rodrigues, e acho que, de certa forma, ele estava certo: se Garrincha tivesse sido escultor, teria sido um Aleijadinho; compositor, um Cartola, e por aí vai. Um gênio de pernas tortas, anomalia congênita, desvio de ambos os membros para o mesmo lado, que fez alguns médicos intrometidos se declararem contra seu ingresso no circuito do futebol profissional. Mas este ano o Brasil fez justiça, nomeando Estádio Nacional “Mané Garrincha” a arena do futebol em Brasília.

 

Aquele garoto pobre nasceu predestinado para ser ídolo, o que chamava as multidões para ver não exatamente o jogo, mas para ver o Garrincha. O filme de Andrade chega a arrepiar, desde a introdução, Mané correndo com a gloriosa camisa alvinegra, estrela solitária no peito. O time de maior invencibilidade da história, 52 vitórias entre 77 e 78, e dono da maior goleada do futebol brasileiro: 24 a 0, sobre o Mangueira, em 1909. Gosto de saber quando meu time ganha, mas não me comovo como antes. Torço pelo Brasil nas Copas do Mundo, mas nem sei se gosto muito de futebol: eu gostava mesmo era do Botafogo e dos dribles do Garrincha (aliás, apelido que lhe foi dado por causa de um passarinho – o garrincha-chorona -, sabe-se lá o porquê. Arrisco que o mito do futebol tenha sido uma criança chorona, que depois de crescida fez um país inteiro chorar. E choramos Mané outra vez, ele nos foi tirado cedo demais).

 

(Agradeço uma sugestão do colunista Cláudio Aldecir, especialista deste jornal.)