O Stradivarius tatuiano





Quando criança, eu morava na casa de número 49 da travessa da Matriz. Ao lado de casa, vivia meu tio-avô Pedro de Almeida Mello, sua esposa Marcília e tia Julia, sua irmã.

Uma tarde qualquer, quando eu tinha uns seis ou sete anos. Não me recordo direito, estava lá no quintal da casa do tio Pedro, brincando. Com uma vareta, fazia rolar uns tatus-bola, moradores do canteiro. Gostava daquilo. Era só encostar a vareta que o bichinho se fechava todo e formava uma bolinha. Daí, era só rolar.

Estava entretido com isso, mas, de repente, ouvi um barulho qualquer no vizinho. Curioso, arrumei um caixote e subi no muro, espiar. Olhei o quintal, no fundo, havia um barracão. Um homem serrava um pedaço de madeira. Nisso, apareceu tio Pedro e me fez descer do caixote, dizendo que era uma coisa muito feia espiar vizinhos por cima do muro. Mas eu estava intrigado com aquilo, disse que um homem estava serrando madeira.

– Ah, é o Bimbo Azevedo cortando madeira para fazer violinos! – explicou.

– Violinos? – perguntei.

– Sim! O Bimbo é um artista. Ele é músico e faz também seus violinos! – comentou.

Achei seu nome muito engraçado – Bimbo. Tio Pedro, então, contou que seu nome era, na verdade, Otávio, e esse seu apelido, Bimbo, significava “menino” ou “garoto”, em italiano. Esse dia ficou em minha memória.

Algum tempo depois, fui com minha mãe à casa do seu Bimbo. Ela foi tocar uma valsa ao piano, que ele acompanhou com seu violino. Fiquei prestando atenção ao violino e lembrando do que tio Pedro havia dito, que ele mesmo os fabricava. Fui com ele ao quintal e conheci sua oficina. Meus pensamentos viajaram longe nesse dia, lembrando do que vi por cima do muro.

Quando construíram o São Pio X, o Conservatório passou a utilizar algumas salas para ensinar música aos tatuianos. Em seu auditório, de vez em quando, eram apresentados peças teatrais e shows musicais. Um dia, aconteceu a apresentação de um violonista lá no São Pio X. Foi logo depois de eu ter assistido, no Cine Santa Helena, ao filme “Meu Violino é Cigano”, com Joselito, um ator mirim espanhol que fez muito sucesso com a garotada nesse tempo.

Ah, gostei tanto que resolvi aprender tocar violino. Para completar, lia gibis do Bolinha, um menino gorducho que tocava violino. Lembrei-me que seria muito fácil comprar um violino, pois o seu Bimbo, o Stradivarius tatuiano, fabricava. Embalado, fui ter aulas com seu João Del Fiol, no Conservatório. Mas só consegui fazer um som parecido com porteira se abrindo ou fechando… não prossegui.

Lembrei-me que o seu Joãozinho Del Fiol, um dos maiores responsáveis pela existência do Conservatório em Tatuí, quando houve a última grande mudança administrativa dessa escola, praticamente foi deixado de lado. Deve ter ficado bastante magoado. Coisas da vida.

Bem, na Praça da Matriz, o coreto servia para apresentações musicais. Ao vivo ou gravações. Quando era criança, na hora de dormir, o som do sistema de autofalantes da praça, comandado pelo Osório Camargo, enchia meu quarto com as músicas e canções então na moda… “Encosta sua cabecinha no meu ombro e chora…” ou “quero beijar-te as mãos, minha querida…”. Mas isso é outra história.

Na década de 60, coretos estavam fora de moda e, por isso, o prefeito Paulo Ribeiro demoliu e construiu uma fonte sonoro-luminosa, que tocava as músicas que faziam sucesso na época e borrifava água em todo mundo.

Quando foi prefeito pela segunda vez, Olívio Junqueira demoliu a fonte e construiu um novo coreto. Esquisitão, com apenas três “pernas”. Mas retomaram as apresentações musicais. Os dobrados, as marchas e as valsas enchiam novamente os ares da praça. Um tanto démodé, mas muitas pessoas acorriam para ouvir. Todos os domingos.

Nessa época, já casado, voltei a morar na travessa da Matriz. De casa, ouvia o som das músicas tocadas no coreto. Fosse qual fosse a banda, a finalização era sempre a mesma: a valsa “Dirce”, a composição mais conhecida de Bimbo Azevedo.

Nem era preciso olhar o relógio. Ao ouvir a “Dirce”, sabia que faltavam poucos minutos para as 22 horas, horário em que, como em um passe de mágica, as pessoas desapareciam da praça e o centro esvaziava.

Sem movimento e sem instrumentos. As partituras fechavam-se e a música ficava sem vida. A música é movimento. Aquelas notações são estáticas. Mortas. A música só existe no momento em que é executada. Uma partitura guardada é algo inanimado.

Bimbo não toca mais seu violino. Faleceu há anos. Seus violinos, esquecidos em um canto, estão mortos. Há um exposto no Café Canção, onde foi sua casa. Suas obras, como toda música, só vivem no instante em que são executadas. Porém, quando alguém toca novamente a valsa “Dirce”, faz reviver seu compositor. Cada vez que isso acontece, Bimbo se torna imortal. Mesmo que por uns poucos minutos.