‘Je suis Charlie’





Responder com bombas e tiros a divergências, provocações ou mesmo insultos já seria algo insano, atitude de assassinos, sem justificativa. Que dizer, então, de se responder com tiros de fuzis ao ataque de alguns lápis?

Por um rascunho de argumento, é isto o que representa o massacre contra o jornal de humor “Charlie Hebdo”, em Paris, quarta-feira, 7, que vitimou 12 pessoas, entre as quais, o editor-chefe Stéphane Charbonnier e os cartunistas Jean Cabut, Bernard Verlhac e George Wolinski, expoentes do cartunismo mundial.

O pecado deles: tiraram sarro do profeta Maomé, religioso em nome do qual um crescente número de fanáticos justifica chacinas mundo afora. Matam, literalmente, em nome de Deus – Alá. O absurdo é tamanho por tantos aspectos que beira o inacreditável.

É impossível acreditar que Alá seja tão mal-humorado assim, que não aceite brincadeira com seu profeta; que Ele se farte tanto com sangue, a ponto de garantir lugar eterno entre as virgens do paraíso islâmico a esses terroristas fanáticos; que simples ideias jocosas possam ferir tanto a fé de pessoas que deveriam buscar a conciliação e a paz, ao invés da guerra; que essa gente seja mesmo gente, e não animais travestidos de Ali Babás do Apocalipse.

É impossível crer que esses extremistas não saibam que, após cada atentado, a população que comunga da mesma fé islâmica será ainda mais discriminada, sendo julgada e sentenciada toda ela como terrorista. Só por isto, percebe-se o quanto esses facínoras desprezam a vida de seu próprio povo.

Outro ponto surpreendente, embora quase nunca reconhecido, é o poder do humor – sempre confundido com brincadeira, coisa de criança. “Humor é Coisa Séria”, lembrando título de livro do psicanalista Abrão Slavutzky.

O estudioso gaúcho aponta que “o humor tem uma ética que elimina toda forma de hierarquia, seja ela política, econômica ou ‘religiosa’. Uma ética em que os ricos podem revelar-se pobres de espírito, pouco espirituosos. Uma ética que suporta o inevitável, pois nem sempre se vence o destino. A ética do humor questiona as verdades, não se deixa empolgar e segue, em alguma medida, a Dom Quixote, que sorri diante dos fracassos”.

E, especificamente quanto à “satanização” do humor pela fé sectária, sustenta ele: “As paixões em geral suportam mal a irreverência do humor. Por exemplo: não raramente as religiões atacaram o riso, como bem descreveu Umberto Eco em ‘O Nome da Rosa’. Todo fanatismo, seja religioso, seja político, não tolera a irreverência do humor. O humor consola, alivia diante das exigências tanto pessoais como sociais. E o consolo é necessário, faz bem diante das críticas do Supereu, das pressões pulsionais, diante do fracasso e da culpa pelo sucesso. Graças ao sentido do humor, pode-se perder um confronto, um jogo, mas não se desesperar.”

Daí a ditadura militar no Brasil se dedicar tanto a acabar com o “Pasquim”, ou o pastor homofóbico tentar, pela indústria desavergonhada dos “danos morais”, por abaixo o “Porta dos Fundos”, e por aí foi, vai e continuará indo…

No exato momento, inclusive, no Brasil – de maneira nada surpreendente -, o governo reeleito, agindo conforme já esperado e em sintonia com a inabalável disposição de seu partido, tem como uma de suas primeiras propostas na área de comunicação a tal “regulamentação econômica da mídia”, o que, na prática, implica no mesmo propósito de atentado contra a liberdade de expressão e informação, embora sem tiros, mas certeira na direção da censura.

A passos largos e cada vez mais no escuro, o Brasil e o mundo caminham rapidamente na direção de uma nova Idade das Trevas, em que o riso proporcionado pelo bom humor dará lugar ao choro pela morte de inocentes e da própria liberdade, promovida por zumbis políticos e religiosos fanáticos – desgraçados, degenerados e descerebrados.

Só nos resta – àqueles que possuem um mínimo de senso de humor e um tanto de apreço pela democracia, pela liberdade e pela tolerância – entoar a prece deixada por Thomas Moore, autor de “A Utopia”: “Senhor, dai-me senso de humor, dai-me a graça de saber discernir uma brincadeira, para que eu usufrua alguma felicidade na vida e que partilhe com os outros”.

* Editor do jornal O Progresso