Música boa, fruto da árvore de boas raí­zes





Na semana passada, escrevi “Afinal, o que vem a ser MPB?”. No texto, remeti à questão das raízes do movimento, as origens do samba, a bossa nova, com tantas misturas, embalando suas origens com ricas influências. Houve comentários saudáveis que se seguiram ao artigo, e entre eles destaco uma frase simples do nosso colega, grande cenógrafo e artista plástico Jaime Pinheiro – ele próprio cultor do cururu, da seresta e da boa música que brota da terra e se cava com a mão. Disse ele que “a árvore, para dar bons frutos, tem que ter uma boa raiz”. Resumiu tudo.

Villa-Lobos é um ótimo exemplo. Em suas “Cirandas”, “Choros”, no “Guia Prático”, com as canções folclóricas usadas nos tempos do canto orfeônico escolar. Hoje alunos ouvem CD, coisas lastimáveis, atropelando a tradição junina com o “novo sertanejo”, fora o “Hino Nacional”, que é ouvido, mas que ninguém canta. A música do Villa está impregnada de elementos brasileiros, e com facilidade ele construiu sob influências de Bach, Debussy e outros, evocando sua terra em “Amazonas”, “Uirapuru” e “Descobrimento do Brasil”, entre outras. Ele próprio, o Villa, juntava-se às rodas de choro cariocas com seu violão, enriquecendo sua bagagem musical. Inspirado no interior paulista, viajou na Estrada de Ferro Sorocabana, e por inspiração compôs o memorável “Trenzinho do Caipira”. Tudo misturava e temperava, fermentando seu turbilhão criativo. Villa também usava nomes populares para seus movimentos de obras, como em “Cantilena”, “Miudinho” e “Canto do Sertão”. Frequentemente, usava um termo universal seguido de uma ideia brasileira, como na “Bachianas nº 1”, onde escreveu subtítulos para a “Introdução” (“Embolada”), o “Prelúdio” (“Modinha”) e a “Fuga” (“Conversa”). Bedrich Smetana (1824-1884), nascido na Boêmia, também se apegou ao que pode colher de sua terra natal. Sua obra mais famosa é o poema sinfônico “Ma Vlast” (Minha Pátria), do qual faz parte o lindo “Moldava”, nome de uma região checa. Eslavo como ele, Antonín Dvorák (1941-1904), coloria sua música com forte apelo à sua terra, dando-lhe um sabor especial e inconfundível, mesmo em meio a outras influências, resultado dos anos de estada nos EUA.

Em nossa MPB, há o exemplo de grandes artistas que se modernizaram mas não se desapegarem de suas origens, mesmo que na forma de recaídas, dando-nos coisas geniais como “Disparada”, do Geraldo Vandré, “Ponteio”, “Arrastão” e “Upa, Neguinho”, de Edu Lobo, e “Louvação”, de Gilberto Gil. Porém, nossa música popular, por conta da  mídia, foi-se tornando aos poucos uma coisa híbrida, condenando os novos gêneros a um sobrevida muito curta, ditada pelos sucessos da TV. O que seria uma forte influência da “country music” norte-americana na música sertaneja tornou-a um híbrido norte-americano com sabor de jovem guarda, tornando-se, em grande parte, produto sem alma, e mesmo as raros cantores e boas duplas do passado cedem agora lugar para grupos de qualidade inferior e mais distantes de qualquer contato com seu torrão natal. Valem mais as botas, os chapéus e os cintos de fivelão da “Terra de Marlboro” do que a terra em que pisam. São galardoados com o maldito “kit fama”: corrente de ouro, carro importado e loira na cama.

Retrocedendo à música de concerto, o conceito de nacionalidade perdeu o sentido com os experimentalismos: a arte seria do mundo, e não de países ou regiões. Do dodecafonismo (construção matemática sobre uma série de 12 sons e suas variações calculadas) de Schönberg à música concreta, que trabalha com montagens de trechos de fitas magnéticas pré-gravadas, a exemplo de Pierre Schaeffer (1940, Paris), e à música eletrônica. É bom frisar que esse último termo hoje foi desviado do sentido original: refere-se a baladas regadas a muito álcool, energéticos e drogas, uma histeria coletiva sob ritmos e ruídos repetitivos e ensurdecedores, tanto importa o “som” ou seja lá o que for, mas sim o pretexto para as festas. Música eletrônica na verdade é uma expressão mais velha do que os bisavós desses jovens, vem do final do século 19, com Cahill, criador do Thelarmonium, seguido pelo Theremin e Ondas Martenot, engenhocas que fascinaram o mundo no passado. A partir de 1951, ela se estabeleceu em Colônia, Alemanha, influenciando compositores como Messiaen, Varèse e Berio – que, no entanto, não a abraçaram por modismo ou obsessão, apenas usaram alguns artifícios em suas criações. Música concreta e música eletrônica são importantíssimas, mas são gêneros sem chão nem bandeira.

Villani-Côrtes, Marlos Nobre, os saudosos Camargo Guarnieri, Osvaldo Lacerda, Radamés Gnatalli e outros grandes compositores brasileiros souberam colher do que há de melhor nesta terra (“em que se plantando tudo dá”, escreveu Pero Vaz de Caminha a Dom Manuel). Houve voos mais livres aqui e ali, mas suas origens sempre foram o alimento para sua criação. Em “Embolada das Dádivas da Natureza”, Edu Lobo esbanja intimidade: “de toda forma e qualidade tem / oi tem pindoba, embiriba e sapucaia / tem titara, catulé, ouricurí / tem sucupira, sapucais, putumujú / tem pai de santo, tem pau d’arco, tatajubá / sapucarana, canzenzé, maçaranduba / tem louro paraíba e tem pininga”.

Mário de Andrade (1893-1945), musicólogo, escritor, professor, deixou uma preciosidade, o “Lundu do Escritor Difícil”, com que finalizo este texto: “Você sabe o francês ‘singe’, mas não sabe o que é guariba? Pois é macaco, marmanjo, que só sabe o que é da estranja”.