Da reportagem
O quanto uma paraplegia ainda durante a infância pode impactar na vida de uma pessoa? Para Marina Oliveira dos Santos, cerca de 30 anos depois, permitiu que ela começasse a pendurar medalhas e empilhar troféus de competições ACD (atletas com deficiência).
Auxiliada pelos professores José Mesquita dos Santos e Eronides dos Santos, o Nide, Marina representa Tatuí como atleta do Departamento Municipal de Esporte, da Secretaria Municipal de Esporte, Cultura, Turismo, Lazer e Juventude.
Em 1986, aos 11 anos, quando residia em Itapeva (SP), Marina caiu do alto de uma árvore em cima de uma cerca. Para receber atendimento médico, foi levada por um primo, em cima de um cavalo, ao hospital.
Contudo, a falta de veículo para realizar o deslocamento adequado e a condução em cima de um equino acabou agravando a situação de Marina, provocando uma lesão na medula espinhal dela e, consequentemente, deixando-a paraplégica.
Com a lesão, Marina possui sensibilidade apenas na parte superior, da peitoral para cima. Desta forma, consegue movimentar normalmente os braços, as mãos, a cabeça e o pescoço.
De acordo com ela, os médicos optaram por não realizar nenhum procedimento cirúrgico. Segundo a atleta, os profissionais alegaram que uma cirurgia, naquele momento, poderia prejudicá-la ainda mais, possivelmente, causando a tetraplegia.
“A Marina é de uma família humilde lá em Itapeva. Talvez, se ela tivesse sido conduzida em um veículo e os médicos a levassem para ser atendida por um especialista em São Paulo, poderia não ter essa lesão”, observa Mesquita.
Conforme o profissional de educação física, uma ex-atleta dele ficou tetraplégica após acidente de carro. A vítima foi atendida em São Paulo e, depois, no Hospital “Sarah Kubitscheck”, em Brasília (DF).
Considerado uma referência na reabilitação de vítimas de politraumatismos e problemas locomotores, o hospital possibilitou que a ex-atleta de Mesquita – que, antes, só podia ficar deitada – pudesse ao menos sentar-se e movimentar os braços.
Marina fazia aulas de hidroginástica com Mesquita. Segundo o professor, as pernas dela têm alguns espasmos musculares quando está na piscina. “Quando ela entra na água, há uma melhora, a circulação sanguínea e as pernas fazem alguns movimentos. Seria algo que, hoje, com o devido tratamento, acredito que Marina voltaria a andar”, destaca Mesquita.
Segundo Marina, ela não teve nenhuma dificuldade psicológica para aceitar a paraplegia. A atleta informa que, após a queda, ficou em reabilitação na AACD (Associação de Apoio a Criança Deficiente), em São Paulo, e aprendeu a viver com as limitações.
“Imagino que, se eu sofresse um acidente semelhante hoje, seria diferente. Em 1986, eu ainda era uma criança e não tinha nenhuma noção de como a minha vida iria mudar a partir daquele acidente”, reconhece.
“A Marina é muito independente. Ela põe sonda, toma banho, vem à academia, faz quase tudo sozinha. Antes, eu a colocava dentro do carro, mas, hoje em dia, ela já se vira e não precisa ficar dependendo de ninguém”, complementa Mesquita.
Conforme dados de 2011 da OMS (Organização Mundial da Saúde), cerca 1 bilhão de pessoas vive com algum tipo de deficiência. Isso significa que uma em cada sete pessoas no mundo possui deficiência visual, auditiva, mental, física ou múltipla.
Através do Censo 2010, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) informou que 45,6 milhões de brasileiros têm alguma deficiência. Esse número corresponde a 23,9% da população do país, estimada em 196,8 milhões de pessoas.
Em 2017, aos 40 anos, Marina foi convidada para integrar a equipe de atletismo ACD do DME nas disputas do 61º Jogos Regionais da 8ª Região Esportiva do Estado de São Paulo, em Sorocaba. No entanto, o convite aconteceu sem ela ter acompanhado uma única disputa da modalidade.
Na época, o professor Nide trabalhava como voluntário na Apodet (Associação de Portadores de Deficiência de Tatuí). Com a necessidade de, em poucos meses, formar uma equipe para os Jogos Regionais, ele e o diretor municipal de esporte, Douglas Dalmatti Alves Lima, o Buko, formalizaram o convite a Marina.
Assim que soube do convite, Mesquita – que já ministrava aulas de hidroginástica a ela – entrou em contato para que Marina começasse a treinar na academia. Proprietário da Academia em Excelência Física, o professor não cobra mensalidades de alunos ACDs.
Posteriormente, Marina começou a treinar arremessos de pesos e lançamentos de disco e de dardos na pista municipal de atletismo, situada no Centro Esportivo “Major Sílvio de Magalhães Padilha”.
Por conta da paraplegia, a falta de movimentação no quadril impede que ela consiga fazer arremessos e lançamentos com muita força. “Eu nem sabia como jogava esse ‘negócio’. Foram os professores que me ensinaram e, hoje, sigo me aperfeiçoando”, confessa Marina, aos risos.
Em menos de cinco meses de treinamentos, a atleta estava participando da primeira edição dela nos Jogos Regionais. Apesar da inexperiência, Marina conquistou uma medalha de ouro e duas de prata.
Ela repetiu exatamente o mesmo aproveitamento, quatro meses depois, no 81º Jogos Abertos do Interior “Horácio Baby Barioni”. Naquele ano, a “Olimpíadas Caipira” foi realiza de forma inédita em cidades do ABC Paulista.
No ano seguinte, Tatuí foi palco das disputas de atletismo dos Jogos Regionais. O evento esportivo foi sediado no município em conjunto com Cerquilho e Boituva. “Em casa”, Marina conquistou mais um ouro e duas pratas. Mais tarde, em São Carlos, trouxe uma prata dos Jogos Abertos.
Já 2019 é considerado o melhor ano da carreira esportiva de Marina, tanto por ela como por Mesquita. A atleta subiu três vezes no ponto mais alto do pódio para receber três medalhas de ouro nos Jogos Regionais, em Sorocaba.
Quatro meses depois, em Bauru, sede das disputas de atletismo dos Jogos Abertos, concentrado em Marília, Marina ainda conquistou mais três medalhas, sendo duas de ouro e uma de prata.
“Ela só pode competir em três provas, pois é o limite nas duas competições. No entanto, todo ano ela traz prata e ouro, tanto nos Jogos Regionais, como nos Jogos Abertos”, celebra Mesquita.
“Ano passado foi o melhor ano da carreira esportiva da Marina, e ela possui a expectativa de um 2020 ainda mais positivo”, reforça.
Neste ano, os Jogos Regionais e os Jogos Abertos serão em Sorocaba. O primeiro evento está previsto para o mês de julho, e o segundo, para outubro. Até o momento, os organizadores não comunicaram se as competições serão adiadas devido ao coronavírus.
De acordo com Mesquita, a atleta tatuiana poderia ser beneficiada com as Paraolimpíadas de Tóquio, no Japão, que seria realizada entre os Jogos Regionais e os Jogos Abertos. No entanto, na terça-feira, 24, o COI (Comitê Olímpico Internacional) adiou oficialmente as Olímpiadas e as Paraolimpíadas para o próximo ano.
A decisão foi tomada após uma teleconferência entre Thomas Bach, presidente do COI, e Shinzo Abe, primeiro-ministro do Japão, “para resguardar a segurança de atletas, técnicos e de todos que participariam diretamente ou indiretamente das competições”.
Segundo Mesquita, no ano passado, algumas adversárias de Marina estavam representando a seleção brasileira, em Lima, no Peru, participando do Jogos Parapan-Americanos.
“Além de competência, a Marina tem muita sorte. Houve um ano que uma das competidoras favoritas ao ouro, do mesmo nível dela, ficou gripada e não foi competir. Este ano, espero que mais atletas fortes possam competir”, declara.
Para o professor, “apesar de ela ter iniciado, teoricamente, com uma idade bastante avança no esporte, Marina é insistente e bastante disciplinada nos treinamentos”.
A rotina semanal da atleta consiste em três treinos na academia, dois na pista municipal de atletismo – a serem retomados neste mês de março -, além de duas aulas de tênis na AACD, na capital paulista.
Para essas aulas, Marina se desloca a São Paulo com uma van disponibilizada pela Secretaria Municipal da Saúde. Ela sai de Tatuí ainda durante a madrugada, às 2h, retornando ao município somente por volta das 21h. “Quase não dá para ficar em casa, mas me acostumei e gosto bastante”, conta a atleta.
Quando os Jogos Regionais e os Jogos Abertos estão mais próximos, Marina ainda realiza treinamentos aos finais de semana. “Nós fechamos a via alameda João de Campos, no bairro Nova Tatuí, e treinamos aqui na rua mesmo”, informa Mesquita.
Entretanto, conforme orientações da OMS e do Ministério da Saúde, além de determinações estaduais e municipais, todos os treinamentos e atividades das quais Marina participa estão suspensos. “Estou em casa, pois foi tudo paralisado por conta do coronavírus. Se Deus quiser, logo passa”, torce a atleta tatuiana.
Devido à paraplegia, Marina compete na categoria “F54”, no arremesso de peso e nos lançamentos de dardo e disco. Desde o ano passado, ela começou a participar de corridas de cem metros em cadeiras de roda. Nesta modalidade, está enquadrada na “T53”.
A classificação dos ACDs é feita para garantir o equilíbrio entre competidores com deficiências em graus diferentes. Ela é feita por uma comissão integrada por médicos, fisioterapeutas e profissionais da área esportiva.
Essa comissão é responsável por avaliar a lesão ou patologia de cada atleta, considerando o potencial dele e o impacto que as limitações ocasionam no desempenho esportivo em determinada modalidade.
Uma Paraolimpíada, por exemplo, reúne competidores com inúmeros tipos de deficiência, como: de potência muscular; de movimento; de membro; no comprimento da perna; baixa estatura; de tônus muscular, a hipertonia; de coordenação muscular, a ataxia; de controle dos movimentos, a atetose; visual; e intelectual.
A classificação dos ACDs é feita através de letras e números. As letras indicam o tipo de esporte. No atletismo, em provas de pista, como corrida e salto, é utilizado o “T”, e em provas de campo, como arremesso e lançamento, é utilizado o “F”. Os números apontam o grau de comprometimento. No caso de cadeirantes, são utilizados os numerais de 51 a 57.
Mesquita aponta ser preciso certo cuidado para trabalhar com ACDs, pois muitos deles sofreram traumas muito graves. Contudo, ressalta que “os trata como pessoas e atletas convencionais”.
“Já tive atletas com muito potencial e que nos esforçamos para ajudar a evolui-los, porém, mesmo premiados em Jogos Regionais, acabaram desistindo”, revela o treinador.
“Há alguns ACDs que percebemos que têm muitos traumas e entram em depressão. Não é fácil, mas a Marina tem uma cabeça muito boa e não se deixa abalar”, conclui Mesquita.