Mais que os 7 a 1





Dois dias após a derrota da seleção para a Alemanha, em uma conversa no Café Canção com Aristides Dionísio Nardini Filho, relembramos alguns acontecimentos da Tatuí de algumas décadas passadas. Ops! Acho que ninguém conhece esse personagem pelo seu nome. Mas pelo apelido a coisa é diferente: Aristides é conhecido como Tato Cigano.

Recordamos dos bailes que aconteciam no Tatuiense ou no Recreativo, além dos demais clubes. Eram eventos importantíssimos para a cidade. Era onde as pessoas aproveitavam a ocasião para encontrar amigos, conversar, ouvir boas músicas, conquistar um amor, namorar e dançar. Os bailes sempre tiveram como finalidade principal incentivar o relacionamento entre as pessoas.

Como havia bailes, havia cada vez mais pessoas que gostavam de dançar. Um dos dançarinos mais famosos dos anos 60 e 70 foi justamente o Tato Cigano. Assim, mesmo com alguma resistência devido ao fato de ser cigano, Tato, loiro, bonitão, sempre bem vestido, rodopiava pelos salões conduzindo as moças mais bonitas da cidade. É preciso lembrar que algumas famílias de ciganos radicaram-se na cidade, deixando de lado a vida nômade comum a esse povo.

Como adorava dançar, além dos bailes da cidade, ele frequentava as cidades da região, conquistando corações em toda parte. Mas nem tudo foi maravilha para o Tato. Em 1972, teve um problema com a Justiça e seu advogado, como estratégia, alegou que ele precisava de tratamento psiquiátrico e foi internado no Hospital Psiquiátrico Vera Cruz, em Sorocaba.

Para justificar a alegação, Tato deixou a barba crescer até seu peito, ficando com um aspecto estranho. Coisa de louco, pensaram, e a estratégia do advogado deu certo, livrando-o de ser preso. Mas ficou algum tempo no Vera Cruz…

No final desse ano, às vésperas do Natal, um dos médicos do hospital convidou-o para fazer parte de uma peça teatral que montaram para distrair os internos. Tentou esquivar-se daquilo, mas o médico insistiu. Disse que os médicos iam assistir e que isso ajudaria para obter sua alta do hospital e, ainda, que sua figura seria excelente para um papel indispensável nessa peça: São José. E assim aconteceu.

No dia da apresentação, vestiram o Tato com uma túnica branca, prenderam em sua cabeça uma auréola de arame revestido com papel dourado, ajeitaram sua barba enorme e lhe deram um cajado. Quando entrou em cena, por uns instantes observou a plateia. Não tinha médico algum. Era formada apenas por internos, quase todos sob medicação forte, impregnados, uns com os olhos arregalados, outros com a língua de fora e quase todos batendo os pés sem parar, devido ao efeito da impregnação… Uma plateia como não se vê em lugar algum.

Essa impregnação é o efeito colateral de medicamentos psiquiátricos ou neurológicos, que provoca muita salivação, rigidez muscular, torção muscular, vontade de andar, pernas intranquilas, rosto meio parado e repuxado como uma estátua, passos curtos e braços flexionados. Dá para imaginar essa inquieta plateia?

Tato caminhou solenemente até o ponto demarcado no chão, apoiado no cajado. Parou diante da plateia, bateu três vezes com o cajado no assoalho e disse sua fala:

– Eu sou São José, marido da virgem Maria, pai de Jesus Cristo! – exclamou em voz alta, sorrindo largamente.

A plateia caiu em gargalhada. E foi aplaudido. Aquela figura simpática e barbuda conquistou os espectadores de tal forma que foi bastante difícil prosseguir com o resto da peça. Outro tatuiano também participou da peça. Era o Moisés, irmão do Ife sanfoneiro e do Lilão, que se tratava do alcoolismo. Moisés fez o papel de Gaspar, o terceiro rei mago.

Devido à participação no teatro, Tato ficou famoso dentro do hospício. Só faltava lhe pedirem autógrafos. Como Tato era árbitro de futebol formado pela Litafu, o médico diretor do hospital, percebendo a capacidade de liderança dele e sabendo que não tinha problemas mentais, pediu sua ajuda para organizar um time de futebol com os internos. Para escapar do ócio, topou imediatamente. Em pouco tempo havia um time com os melhores jogadores do hospício, ou seja, aqueles menos impregnados pela medicação.

Como o filho do diretor do hospital tinha um time formado com amigos de Sorocaba, marcaram um torneio em um final de semana, contra o time de internos dirigido pelo Tato.

A animação entre os detentos foi grande. Talvez mais animados do que com uma Copa do Mundo. Além de conhecerem cada um dos jogadores, conheciam também a pouca capacidade de jogar e, ainda, seus problemas físicos e mentais. Mas acreditaram.

– Urra! É campeão! Urra! Vera Cruz é campeão! – a torcida impregnada cantava em uma só voz.

Quando o time adversário entrou em campo, soou uníssona a maior vaia que já se ouviu nos campos hospitalares.

– Uuuuuuuuuuhhhhhhh! Uuuuuuuuuuuuuuuu! – Já perderam! Já perderam! Viva o time do Vera Cruz!!!! Vera Cruz é campeão! – repetiam sem cessar.

Tato estava orgulhoso com seu time e com os torcedores. Parecia que a vitória era certa. Uma torcida dessas empurra o time para frente.

Mas, sempre existe o “mas”. O time tinha alguns defeitos, apesar de contar com craques renomados no hospício. Um dos jogadores, outro tatuiano, era novamente o Moisés, que jogava como beque. Na partida, parecia que os jogadores do time do Vera Cruz haviam sido treinados por um alemão: o Alzheimer, tantas eram as trapalhadas em campo, pois havia jogadores que se esqueciam da bola. Outros ficavam parados em campo, tal qual o Fred.

Cada vez que o time de Sorocaba avançava em um ataque, Moisés, em vez de tentar defender, com alguns trejeitos suspeitos, virava-se de costas e não impedia a passagem dos atacantes, fazendo os torcedores caírem na gargalhada com suas palhaçadas.

Ah, o resultado não poderia ser outro. Quase perderam a conta. Nem o Felipão seria capaz de formar um time daquela categoria: 15 a 0! Isso mesmo: 15 a 0 foi o placar daquela partida entre os internos do hospital psiquiátrico com o time de amigos do filho do diretor.

Pouco tempo depois Tato saiu de lá. Nunca mais participou de uma peça teatral, mas não deixou o futebol: apitou diversas partidas em Tatuí e, claro, rodopiou nos salões de baile de Tatuí, Tietê, Cerquilho, Itapetininga…

Ah, mas nenhum dos internos precisou de apoio com os psiquiatras ou psicólogos do hospício para superar o trauma da derrota, como a turma do 7 a 1… E nem teve choradeira. Foi só alegria!

É, professor Wilson Bertrami… não deu para resumir…! rs