Como se não bastasse, literalmente, a corrida pela sobrevivência – que só terá sucesso se sustentada pela ciência e respeito aos protocolos empíricos implementados com mais eficácia em várias partes do mundo -, é dramático observar o nítido “regresso” da humanidade.
Sintomas neste sentido já vinham sendo evidentes – em particular, nas tendências ideológicas obscurantistas, resgatando-se uma atmosfera medieval, em que tudo se resolve na base do extermínio dos supostos inimigos.
Neste contexto, a arma é sempre a solução! – só mudou a espada para a pistola… Não coincidentemente, o conceito de democracia e os tais direitos humanos são sumariamente desprezados, ao passo que falar em estado laico virou piada (na verdade, quase ninguém mais sabe o que é isso).
Mas, nem tudo é tétrico. Há oportunidade em toda crise – como se diz –, e nesta pode-se observar o presente pensando no futuro. Em síntese, há quem contribui e há quem atrapalhe; há quem concilia interesses comuns a favor de todos e há quem desagrega com foco apenas em pretensões mesquinhas.
Na base da sociedade, bem abaixo das altas autoridades, há exemplos também significativos: existem os que estão se doando, em tempo e esforço, para produzir máscaras, angariar alimentos e sustentar outras tantas ações verdadeiramente sociais – melhor ditas, “vitais” neste momento.
E existem os que, simplesmente, aproveitam o menor movimento e a atenção das autoridades de segurança pública, ora voltada à saúde, para furtar até equipamentos e insumos hospitalares – fora os espertos de sempre, que se aproveitam do caos para lucrar despudoradamente.
Muito se fala na tal “responsabilidade social”, mas a verdade é que isto, em geral, não passa de marketing, de um discursinho barato, politicamente correto, só para vender bem (em duplo sentido) marcas e produtos, como se aliados fossem dos menos favorecidos, do meio ambiente, dos animais etc., etc.
Um aparte: claro que esse marketing é poderoso e ajuda a vender qualquer produto – inclusive, um “país”, que pode, ou não, ser visto potencialmente como um bom lugar para se investir.
Portanto, ainda que se priorize a economia à saúde, acabar sendo visto, pelo mundo, como um país “pária”, que não valoriza a vida, arrebenta com o marketing nacional, tornando a péssima a imagem da nação.
Ou seja, essa má impressão do Brasil pode demorar muito mais a ser apagada que o próprio fim da pandemia, o que geraria, por derradeiro, ainda mais prejuízos. Não é preciso ser economista para notar o equívoco – dado ninguém botar dinheiro em lugar mal afamado.
Voltando ao tema, é preciso observar e supervalorizar os indivíduos, empresas e iniciativas que não estão perdendo tempo com paranoias e, assim, atuando pelo bem comum.
Há incontáveis agindo assim, desde multinacionais de bebidas que passaram a produzir álcool em gel até conhecidos de cada um – amigos, vizinhos e outros – que estão costurando e doando máscaras.
Sim, pode até haver marketing nisto, mas, entre o que se faz de “coração” e o que se faz por “eleição”, ao menos que se faça! Tudo que vier a colaborar é bem-vindo.
E, ao final, então, que se tome a cerveja da fábrica que, ao menos, se dispôs a algo; que se vote no político que, ao menos, teve de lavar mais as mãos com álcool porque se deu ao trabalho de acompanhar os esforços de combate à pandemia, mesmo expondo-se mais ao vírus.
Concomitante, sob quaisquer desculpas, pode-se deixar de observar tanto os que, explicitamente, pouco se importam com a vida alheia quanto, pior ainda, aqueles que, morbidamente, seguem sustentando as peculiaridades medievais, como a ignorância cabal, a brutalidade animalesca, a prepotência digna dos incautos e a desumanidade generalizada.
Pior para os brutos do milênio retrasado, não obstante, que podiam empunhar machados mas não tinham internet para machucar muito mais e ao mesmo tempo – com suas conclusões tão rasteiras quantos fáceis e infinitos compartilhamentos de fake news.
Agora, não! A modernidade permite, do conforto do lar, que a horda bárbara ataque ininterruptamente seus inimigos imaginários e tudo o que representa um mínimo de desenvolvimento humano.
Já estava fustigando a ciência faz tempo – negando até a própria “redondeza” do planeta, defendendo fechamento do Congresso e do STF, promovendo racismo, homofobia, xenofobia, fanatismos e extremismos os mais diversos e estapafúrdios.
Porém, agora, está a piorar, dada a turba incivilizada, aparentemente, mostrar-se afoita por uma nova inquisição, com o suplício público de pessoas.
Resgatando-se o passado (olha a importância de estudar história para não repetir os mesmos erros), dois exemplos são oportunos para demonstrar o que se identifica como “estigmatização”: o tratamento a que já foram submetidos leprosos e judeus.
Na prática, a opressão era justificada, impondo ainda mais sofrimento às vítimas. No caso dos leprosos, entre tantas outras injustiças, era comum, na Idade Média, que a exclusão do doente se realizasse através de um cerimonial sacralizado.
Para isso, havia uma missa especial, a “Separatio Leprosarum”, que funcionava como uma espécie de rito de passagem, significando a “morte social” da pessoa e a consequente perda da identidade anterior, substituída pela nova condição: a de “leproso”.
Uma vez encerrada a cerimônia, o doente seria acompanhado até os limites das cidades, de onde não mais poderia retornar, ou acabava internado em um “leprosário”.
Quanto aos judeus – também entre infinitas agressões -, deve-se oportunamente lembrar a Alemanha nazista (cujas características foram, também, por demais obscuras), em que comércios de cidadãos dessa etnia tiveram pelo Terceiro Reich a promoção de pinturas em suas fachadas.
Assim, indicava-se que, ali, era estabelecimento de um “pária”, um ser “inferior”, que bem poderia ser hostilizado por ofender a “superioridade” ariana… O desfecho disto todos conhecem (ou pelo menos deveriam).
No momento, embora de forma nem um pouco inesperada, mas extremamente preocupante, há gente manifestando-se em rede social (claro!), raivosamente, acerca dos boletins diários informativos sobre coronavírus.
As “demandas” envolvem saber quem são as pessoas infectadas – de preferência, pelo visto, com nome completo, CPF, RG, endereço, e-mail, WhatsApp…
Sim, há outros tantos (com razão) que buscam saber quantas pessoas já se curaram, saindo dos hospitais e retornando para casa.
É justo, até para se ter melhor ideia da gravidade da doença a nível local e em face da necessidade de, também, não se alarmar demais a população, deixando em aberta a impressão de que se está “botando o terror” na comunidade.
O jornal O Progresso – que tem divulgado todos os relatórios oficiais exatamente como são levados a público – tem questionado as autoridades sobre este particular, mas compreende que o respeito ao sigilo dos enfermos é um direito deles e que a própria operacionalização das informações não é algo com respostas rápidas. Portanto, aguarda.
No entanto, qual o propósito de se identificar pessoalmente os infectados? Proteger-se ou promover uma nova estigmatização irracional? Comportamento medieval é o que não falta para tanto. Assim, antes que pessoas comecem a ser expurgadas da cidade ou que residências venham a ser pichadas, melhor manter esta parte em sigilo.