“A imprensa brasileira, sobretudo os principais jornais brasileiros, gestou o Golpe (de 1964)”. A declaração do jornalista Bruno Moraes Pereira, por ocasião do lançamento do livro “Jornalismo em Tempos de Ditadura: A Relação da Imprensa com os Ditadores”, não é calcada em argumentos vazios ou em ideologia partidária. O profissional chegou a essa conclusão após, praticamente, dois anos de pesquisas.
O resultado pode ser visto na obra que será lançada na quarta-feira, 29, no MHPS (Museu Histórico “Paulo Setúbal”), onde haverá coquetel, seguido de noite de autógrafos.
Concebida como trabalho de conclusão de curso, o livro discute jornalismo e ditadura. “Como está no subtítulo, o livro trata da relação, mas não daquela que estamos acostumados ou que aprendemos um pouco nos livros, a de que os jornais foram censurados, que houve uma ingerência do regime ditatorial nas redações”, iniciou.
As pesquisas levaram-no a uma conclusão diversa, apontando para uma simbiose. De acordo com o autor, a imprensa brasileira, sobretudo os principais jornais, gestou o golpe de Estado de 1964, que resultou na deposição do presidente João Goulart, o Jango.
Ele concentrou-se em pesquisar como os órgãos de imprensa do eixo Rio-São Paulo noticiavam os fatos anteriores, no decorrer e posteriores à ditadura.
Um dos motivos que o levaram à delimitação é que, apesar de a capital federal ter sido transferida do Rio de Janeiro para Brasília, em 1960, os núcleos dos poderes político e econômico ainda se concentravam nos dois Estados do Sudeste. “No Rio, havia mais um poder político, em São Paulo, mais econômico”, observou.
Pertencentes à elite nacional, esses dois poderes teriam permitido um patrocínio do regime militar. Conforme o autor, também incitaram a disseminação da manipulação. “Não gosto dessa palavra, mas a imprensa criou e deu suporte para a ditadura”, declarou.
Fatos como a renúncia de Jango, que permaneceu apenas sete meses no governo, deixando-o ainda em 1961 por conta de “forças ocultas”, são recontados na obra. “O livro começa em 1964 e atem-se a esse olhar sobre a relação entre a imprensa, que era a porta-voz do interesse da elite, e os ditadores”, declarou.
Conforme o jornalista, fazendo uso das notícias, os principais veículos do país “inflaram as elites a se manifestarem”. Nesse contexto, as reportagens teriam papel de fomentar um clima de insatisfação geral, pelo qual exigiam reação dos militares.
“Isso para dar credibilidade ao golpe e status de que foi a própria população quem pediu (a intervenção militar)”, argumentou o jornalista, que ainda pesquisa sobre o tema.
Para ele, o papel da imprensa mudou a partir dos “primeiros sinais de enfraquecimento do regime”. “Alguns dos veículos pularam fora”, argumentou.
Entre as razões para essa mudança de comportamento, estaria o fim da fase do milagre econômico e do “crescimento extraordinário”. Como a dívida pública era crescente, assim como a inflação, os militares entregaram o governo a José Sarney, o primeiro presidente civil pós-ditadura.
Curiosidade
O regime militar brasileiro chegou ao fim em 15 de março de 1985, três anos antes do nascimento do autor. Entretanto, por coincidência, a ditadura esteve presente na vida dele.
O avô do jornalista trabalhou como policial militar. Ele compunha a Cavalaria 9 de Julho, destacamento do Regimento de Polícia Montada. “Ele estava no olho do furacão, em São Paulo, vendo o endurecimento do regime”, comentou.
Apesar de não incluir o avô como fonte, o jornalista teve nele influência para a temática. “Eu ouvia, por vezes, algumas histórias que meu avô contava. Até da soltura do Lula (Luiz Inácio Lula da Silva, detido por 30 dias em 1980 e que se tornou presidente da República entre 2003 e 2010)”, acrescentou.
O jornalista se aprofundou nos estudos sobre a ditadura em meados de 2012, por conta do curso de jornalismo. Dedicou-se ao assunto até 2014, quando fechou a obra.
Além das pesquisas a fontes bibliográficas e junto ao acervo da Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional, Pereira juntou informações obtidas por meio de entrevistas.
Entretanto, o autor enfrentou dificuldades porque os entrevistados residiam ou em São Paulo ou no Rio de Janeiro – Pereira cursava jornalismo em Ribeirão Preto.
Entre os que se propuseram a contribuir com a pesquisa, destacam-se profissionais renomados, como Beatriz Kushnir, Mino Carta e Audálio Dantas.
Beatriz é diretora-geral do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e autora do livro “Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988”. Carta foi o primeiro diretor da revista “Veja” (na época, chamada de “Veja e Leia”); e Dantas exercia a função de presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo no período de vigência da ditadura.
Para Pereira, os três oferecem uma visão bastante abrangente. Beatriz, por exemplo, teve a “Folha de S. Paulo” como objeto de análise em doutorado.
“Abrindo parênteses: a ‘Folha’ entregou um dos jornais dela, a ‘Folha da Tarde’, diretamente para os militares. Eles estavam na redação, redigindo as matérias. Os militares estavam fazendo o jornal mais ligado à repressão”, ressaltou.
De outro ângulo também importante, Carta vivenciou de forma singular o regime. “Ele tinha relação com os militares, do outro lado do balcão”, mencionou Pereira.
Como diretor, Carta precisava negociar autorização para destravar reportagens da revista. “Ele sofria muito com a caneta vermelha, com os cortes e carimbos dos censores”, disse.
Já Dantas teve papel importante na questão das denúncias de abuso contra a imprensa. Entre elas, o episódio ligado à morte do jornalista Wladimir Herzog.
“Ele foi um dos primeiros – ele e o rabino Henry Sobel – a denunciar o assassinato que, até então, alguns veículos mais ligados à ditadura noticiaram sem nenhum tipo de questionamento, como um suicídio”, acentuou.
A participação do rabino está presente em um dos cinco capítulos do livro – todos, com traços do roteirista e ilustrador Sebastião Ribeiro. Os fatos estão distribuídos em “Crônica de um golpe anunciado”, “A correção de rumo e o choque”, “Relatos de uma juventude armada”, “O caso Herzog” e “Diretas Já”.
A ditadura já era um tema de interesse do ilustrador. Por conta da formação em audiovisual, Ribeiro explicou que sempre se interessou por esse período da história.
“Até porque, o cinema, assim como outras formas de arte, é uma ferramenta política e também foi alvo da censura, respondendo a ela de forma muito perspicaz nos diversos períodos da ditadura”, afirmou.
De acordo com o ilustrador, o Cinema Novo, o “cinema marginal” e a pornochanchada, com as respectivas estéticas, geraram obras consideradas “importantes registros da memória do país e que refletem a grande ambivalência que existia”.
“Assim também é a obra do Bruno, que revela os meandros da relação paradoxal entre o jornalismo e a ditadura. E, claro, foi preciso mergulhar no livro e, posso afirmar, é uma leitura esclarecedora e surpreendente”, avaliou.
“Selecionamos fotografias icônicas de cada período, pois não queríamos simular momentos ou romancear os fatos, e comecei a fazer testes, desenhos, colagens, ainda experimentando traços diferentes e sempre mostrando os resultados para o Bruno e ouvindo as ideias dele”, descreveu Ribeiro, sobre o trabalho.
“Queríamos que as imagens, uma para cada capítulo do livro, tivessem a mesma identidade estética, e optei por dar a elas um aspecto de charge, de jornal impresso na época. Portanto, usei um efeito digital para dar certa sujidade, e, então, reproduzi todas no papel, novamente”, detalhou.
A obra a ser apresentada em Tatuí marca o “debut” de Ribeiro como ilustrador de livros. Até então, ele havia feito trabalhos para o cinema, produzido imagens conceito para direção de arte e figurinos e “storyboards” (imagens em sequência com o propósito de pré-visualização), além de animações curtas.
Ribeiro tem, ainda, projeto de site para publicar e divulgar trabalhos como ilustrador.