Eu te saúdo, Maria





“Je vous salue, Marie”, é o início da oração “Ave Maria”, em francês (“Je vous salue, Marie, pleine de grâce”), com que o arcanjo Gabriel anuncia à escolhida que seria a mãe do Salvador (Lucas, 1:28). Dá título a um filme (1985) do mestre do moderno cinema francês Jean-Luc Godard, que transpõe a anunciação de Maria para o mundo moderno, com personagens mundanos e atores comuns. Detalhe: Godard era anarquista, e, como todo ateu de grande inteligência, tinha suas frequentes recaídas na fé.

No filme, Marie é uma estudante que ajuda seu pai em um posto de gasolina e gosta de jogar basquete. Orgulha-se de sua virgindade e mantém um relacionamento casto com seu namorado Joseph, motorista de táxi que abandonou a escola, e que se mantém fiel a Marie mesmo tendo ela negado reiteradamente deitar-se com ele. Um senhor chamado Gabriel surge para anunciar à casta Maria sua gravidez. Marie fica absolutamente transtornada e decide relatar a Joseph o acontecido. O jovem, enlouquecido, a acusa de traição, mas Gabriel intercede para convencê-lo de que sua Marie daria mesmo à luz o filho de Deus, e que Joseph deveria aceitá-lo com fé. Simbolicamente, Marie encontra algumas respostas em suas orações, entre visões de elementos como o sol, a lua e a água.

Correndo em paralelo, Eva, também estudante, tem um caso com seu professor, que a seduziu com um “xaveco” sobre ela ser uma superdotada, especial, fazendo uma trama cotidiana em contraponto. A história paralela de Eva mostra a dúvida de fé de Godard no mistério da Virgem, mas o filme prossegue com Marie se casando com Joseph e, sem ser por ele tocada, dá à luz um menino, que cresce e cedo sai de casa para assumir os negócios do Pai, clara referência à missão de Jesus na Terra. E Maria, enfim, que o havia amamentado, descobre seu corpo de mulher, humana que é.

O filme, claro, chocou alguns países mais conservadores, e no Brasil foi proibido por José Sarney, então presidente, autodeclarado devoto de Nossa Senhora (mas nunca visto como dono dessa pureza como político). Na França, berço da chamada “Nouvelle Vague” (no Brasil, Cinema Novo), Godard se tornara, já de há muito, um ícone da chamada sétima arte. Dos filmes a que assisti marcaram-me “Desprezo”, de 1962, e “Alphaville”, de 1965, um lugar fictício em que todos os cidadãos eram controlados por um supercomputador (“Alpha-Soissante”) – qualquer semelhança com os dias de hoje, meio século depois, é mera coincidência.

Adorei “Pierrot, le Fou” (“Pierrot, o Louco”, também de 1965), com Anna Karina e Jean Paul Belmondo, cujo título em português é lastimável: “O Demônio das 11 Horas”. Outros foram “Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela”, “A Chinesa”, de 1967, inteiramente rodado em um cubículo, e “Weekend à Francesa” (1968), uma crítica à classe média parisiense, que no fim de semana saiu da cidade e engarrafou as estradas para a praia de tal forma que, parados, os carros em fila tornam-se mesas de pôquer ou de comida, as crianças brincando, uma vida comunitária forçada muito mais louca do que a da cidade que deixaram para descansar. O filme é um marco por trazer o talvez mais longo “travelling” da história do cinema: a câmera desliza sobre um longo trilho, filmando por 11 minutos em movimento constante a fila de carros e as loucuras dos parisienses que aconteciam no engarrafamento.

Um filme marcante foi “One Plus One: Sympathy for the Devil” (“Devoção ao Demônio”, de 1968), em que Godard faz uma salada de ideias, verdadeira loucura. Há ensaios do grupo Rolling Stones tocando a música que deu título ao filme (“Por favor, permita me apresentar / sou um homem de riqueza e bom gosto”), contando a história do demônio na Terra. A letra fala desde “eu estava perto quando Jesus Cristo / teve seus momentos de dúvida e dor” até a morte dos czares, e, na época, no original, até quando Guevara foi assassinado. “Encantado em conhecer você / espero que tenha descoberto meu nome”, diz o demônio. Os ensaios no estúdio são perpassados por cenas de jovens lendo poemas de Mao-Tsé-Tung enquanto andam sobre pilhas de carros em um desmanche, e cenas totalmente surreais.

Voltando ao mistério de Maria e José, um contemporâneo de Godard, também ateu, mas comunista e homossexual assumido, o italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), é autor de uma obra-prima, “Teorema”, de 1968, em que um jovem, interpretado pelo ídolo das garotas da época Terence Stamp, seduz uma família inteira, levando o caos ao seio de um lar burguês. Pasolini filmou com não atores seu “Evangelho” (“Il Vangello Secondo Matteo”) em 1964. Buscava a imagem que visualizava como Cristo, judeu palestino, interpretado por um rapaz pobre, franzino e de rosto comum. Recaída de fé de outro intelectual ateu engajado politicamente, como Godard! Entre esses e Antonioni, Resnais, Bergman, Costa-Gravas, Glauber, Diegues, vivi uma juventude muito rica. Ia ao Cine Paissandu, frequentado pela turma mais esclarecida, onde vim a ser apresentado e conhecer um solitário frequentador, Milton Nascimento. Verdade que cabulávamos aulas do colégio de padres para ir ao cinema, mas o que perdíamos em classe era recuperado e, acima de tudo, coroado por um conhecimento bastante amplo de uma arte que não existe mais: perdeu para Hollywood, com seu cinema pasteurizado, modelo imposto ao mundo. Hoje há “Capitão América”, “Cidade de Deus”, “Harry Potter”, “Trek”, “Ghostbusters” e “Hobbit”, efeitos sobre efeitos produzidos em computadores e pouca riqueza de conteúdo e objetivos. Ah, e novelas da TV. Uma pena.