Dize-me teu sobrenome e te direi quem és





Há mais de 15 anos, recebi em minha sala na Escola de Música do Teatro Municipal de São Paulo, que eu dirigia, uma pesquisadora de uma universidade norte-americana, Geysa Dourado, sobrenome tal qual o meu. Especialista em genealogia, claro, tinha estudado a de sua própria família. Não achamos elo de parentesco entre nós, mas descobri como meu sobrenome teria parado no Brasil. Ele havia sido traduzido do hebraico como “peixinho dourado”, referência a algum tipo de peixe da região do Douro. O nome, com o tempo, terminou sendo desmembrado em Peixinho (aliás, sobrenome de um importante compositor lusitano falecido em 1995) e Dourado, sendo que o último veio para o Brasil aportando primeiro na Bahia e depois Rio Grande do Sul, terra de meu avô paterno.

Resolvi revisitar a história universal, a partir de 1492, quando a Constantinopla bizantina caiu nas mãos dos otomanos (turcos), começo do final da dominação moura na Península Ibérica (711-1492). Em 1497 assumiram o poder na Espanha e em Portugal os “reis católicos” Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que, casados, uniram também os dois países em uma só Espanha, governada com mão de ferro. Com a reconquista da Península, em 1492, os muçulmanos foram expulsos, e o judaísmo proscrito para a imposição total do catolicismo. Muitos judeus fugiram para a Europa, instalando-se na Holanda, entre outros países, o norte da África, depois invadindo o Brasil (séc. 17, pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais), e indo parar nos EUA, onde ergueram a Nova Amsterdam, depois renomeada Nova Iorque (Amsterdam, nome de uma cidade dos Países Baixos, e Iorque uma região da Inglaterra). Já os judeus que ficaram na Península Ibérica continuavam a realizar seus ritos nos porões, todos com seu “menorah” (candelabro sagrado de nove velas da cerimônia do Hanukah), textos em hebraico e estrelas de David. Nesses locais, frequentemente, havia no nível da rua igrejas católicas como camuflagem.

Os “novos cristãos” passaram a adotar nomes não judeus, e começaram com o que tinham de mais fácil: árvores e frutos (Carvalho, Pereira, Figueira), animais (Bezerra, Coelho). Também adotaram sobrenomes das chamadas toponímias (nomes de lugares), referindo-se a terras ou acidentes geográficos: Ribeiro (riacho), Miranda (cidade do mesmo nome, perto do rio Douro), Camargo (os dois últimos sobrenomes geralmente precedidos por “de”), da província espanhola de Santander, Cabral (“lugar onde passam as cabras”) ou Bragança (cidade de Portugal).

Segundo o historiador Moacyr Costa Ferreira, o sobrenome surgiu com o imperador chinês Fushi (2.850 a.C.), que decretou que todos deveriam possuir um nome de família, para melhor identificação. Esses sobrenomes deveriam ser extraídos das 438 palavras do poema Po-Chia-Hsing (“Po chia hsing chien tzû wên…”).

A Itália foi um dos países mais tardios a adotar sobrenomes: referiam-se às pessoas conforme o lugar de onde vinham, como Leonardo da Vinci, Gasparo da Salò (grande fabricante de violinos que viveu há mais de 500 anos) e Pierluigi da Palestrina, compositor do auge da polifonia (música com duas ou mais linhas melódicas independentes), e toponímias (lugares). Hoje, já sobrenomes regulares, a exemplo de Pepino di Capri (grande cantor romântico) e Mario del Monaco (fabuloso tenor). Entre os hebreus (Livro dos Números, do Pentateuco, de onde vem o Torá, livro sagrado judaico), era comum o nome paterno seguir o prenome do filho: “De Rubem”, ou “Elisur, filho de Sedem”.

(No Brasil, nos sertões onde a pobreza mata, na falta de sobrenome e até na ignorância de quem são os próprios pais, muito se identificam de modo curioso. Conta “Morte e Vida Severina”, poema de João Cabral de Melo Neto, que o retirante se apresenta logo ao início, falação que adiante repasso encurtada: “Como então dizer quem fala / ora a vossas Senhorias? / Vejamos, é o Severino da Maria do Zacarias / lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: Se ao menos cinco havia / com nome de Severino / filhos de tantas Marias / mulheres de tantos outros / já finados Zacarias…”

Os sobrenomes adotados pelos “novos cristãos” foram escolhidos pelos judeus sefaraditas (de Sefarad: Península Ibérica, em hebraico), que haviam imigrado para as terras de Portugal e Espanha, região a que se referiam, até por verem semelhanças entre cabeça do animal e o contorno da Península no mapa, como “O Leão de Judá”, a terra prometida na Europa ocidental. Fugiram da Santa Inquisição Espanhola (1478 -1834), espalhando-se por países da Europa, norte da África, EUA e, entre os países latinos, principalmente Brasil e México.

Aqui, aportamos como “novos cristãos” em terra indígena, que em tupi-guarani se dizia Pindorama (lugar das palmeiras) e, com a nossa chegada em 1.500, Vera (verdadeira) Cruz. Com o Tratado de Tordesilhas (1494), portugueses e espanhóis haviam dividido o mapa do mundo com uma risca vertical: da América de Colombo para a esquerda, para os espanhóis, e para os portugueses o lado direito, demarcando direitos até sobre eventuais futuras descobertas. Hoje, brancos que vieram daqueles judeus e muçulmanos, mesclados com italianos, orientais e outros povos e raças, não vivemos em guerra (não literal) entre nós mesmos, apesar de o mundo ver radicais fundamentalistas usando em vão o nome de suas religiões em constantes conflitos. Por fim, o que nós fizemos com os antigos inquilinos da terra, os índios, daria outro longo, longo capítulo.