Tudo começou por causa de um acidente com o cantor Roberto Carlos. Aos seis anos de idade, durante uma festa em sua Cachoeiro de Itapemirim (ES), na correria o menino escorregou e foi atropelado por uma locomotiva, tendo a metade da perna direita amputada. Com uma prótese desenvolvida para ele, seu caminhar hoje é quase natural. Apesar de o fato estar registrado em incontáveis reportagens, livros e até no site público “Wikipédia”, Roberto não quer ouvir falar do assunto – mesmo que ele próprio tenha composto uma música, com o sugestivo título de “O Divã”, sobre o acidente: “Relembro bem a festa / o apito / e na multidão um grito / o sangue no linho branco”. Também tirou de seu repertório “Quero que vá tudo pro Inferno”, por causa da última palavra. Na contramão de Roberto, Mara Gabrilli é um exemplo admirável. Não apenas abriu sua vida para a biógrafa Milly Lacombe (“Depois Daquele Dia”, recém-lançado): ela rasgou em público sua vida inteira, sem medo de se expor, em sua incansável luta pelos deficientes. E não precisa de biografia não autorizada: ela conta tudo mesmo. Fala do acidente que a deixou tetraplégica tão abertamente quanto de sua vida íntima.
Em apoio a Roberto, entra em cena Chico Buarque, na defesa intransigente do art. 20 do novo Código Civil – sem compreender ao certo a diferença entre um Código, diploma menor, e a Constituição Federal, maior, na qual há dois incisos nada contraditórios (como alguns pensam) do art. 5º. Diz o inciso IV: “é livre a manifestação do pensamento…”. A seguir, o V: “(…) indenização por dano material, moral ou à imagem”. Mas há uma pedra no caminho: o art. 20 do Código Civil precisa ser eliminado ou modificado, à luz da Constituição. No início, nem Chico nem a presidente da Procure Saber, Paula Lavigne, ex de Caetano, pareciam entender uma coisa ou outra, e nem quando o novo Código havia entrado em vigor, citando proibições a biografias que aconteceram anteriormente.
A Roberto e Chico juntou-se, meio timidamente, Caetano. Depois, solidários, Gilberto Gil e Djavan, assim como alguns artistas menores, seguramente de carona na fama dos grandes nomes. Ana de Hollanda, ex-ministra da Cultura, diverge do irmão e é contra a necessidade de autorização prévia do biografado, e Paulo César de Araújo, biógrafo proibido do Roberto Carlos, cerra fileira do lado da livre-bibliografia, assim como muitos artistas, intelectuais e historiadores, que temem que relatos históricos podem vir a ser proibidos pelas famílias de seus personagens. Hoje a pressão recai sobre o Chico (Roberto se fecha em copas), que confessa (“Folha”, 18 de outubro): “Posso ter me enganado. Julgava estar tendo uma posição sensata”.
Passo a um episódio real, e o conto na primeira pessoa, não na do Chico. O ano era 1975, e a “Gota d’Água”, de Chico e Paulo Pontes, estava para ser estreada no Rio, no Teatro Teresa Raquel. Bibi Ferreira fazia o papel principal e a cenografia foi de Gianni Rato, que havia trabalhado até para Federico Fellini. Os músicos (entre eles eu) ficaram a cargo do Dori Caymmi. Aproximava-se a estreia da peça, e nós e as bailarinas sem recebermos o valor prometido para os ensaios. Em vista do descumprimento do acordo, partituras já memorizadas, informamos que não haveria estreia. Com uma fila quilométrica desde muito cedo na porta do teatro, não haveria como alegarem “possível prejuízo” (a temporada foi um estrondo). Restou-me apelar para o Chico. Fui ao boteco onde ele tomava seu uísque, e pedi que intercedesse. Ele respondeu que isso era “problema da produção”. Insisti, alegando até o compromisso do compositor com a causa da justiça social, e por aí vai. Nada. Sob pressão, e sem Chico, foi selado um acordo com a produção, e as carteiras de trabalho foram assinadas. Fiquei frustrado com o Chico, mal podia ouvir falar nele. Porém, com o passar dos anos, percebi que um artista famoso é um mito forjado e trabalhado, mas também é um ser humano. Pois se até Francisco disse que os papas também pecam, imagine o outro Chico com seus pecadilhos. Não se cobra a perfeição de um artista como pessoa, embora sua vida seja pública e ele exponha em arte suas ideias. Mas isso é uma coisa, e censurar previamente é outra.
A imagem do artista é um retrato cunhado para o público. Em “Canto Latino”, de Milton Nascimento (que ora perfila com o Procure Saber), o letrista Ruy Guerra, mesmo que subjacentemente, fez uma apologia oculta à guerrilha – mas claro, nunca poderia ser cobrada do poeta uma adesão às armas! “Brota em guerra e maravilha / na hora, dia e futuro / da espera virar…” (e a estudantada gritava, ao final: “guerrilha”). Passei a admirar ainda mais o Chico depois dessa: “Agora, se a lei tá errada, se eu tô errado, tudo bem. Perdi”. Bravo, Chico.
Chegando ao final da novela, a ministra Marta Suplicy dá o tom: liberdade total, mas multas pesadas por calúnia, difamação, injúria, mentiras e danos morais (aliás, os três primeiros já são crimes previstos nos art. 138/140 do Código Penal). Joaquim Barbosa expõe de forma simples, e difícil será não concordar: liberdade completa, mas um rito sumário e rigoroso para os que cometem comprovadamente não a revelação da verdade, e sim injustiças por meio de falsidades e ataques pessoais. Henrique Alves, presidente da Câmara, corre para tirar da gaveta e tentar pauta para um projeto que modifica o malfadado artigo – momento efervescente, aliás, bastante oportuno politicamente – antes que o STF risque o “vintinho” de vez, e salve as biografias!