De como o primo Basí­lio passou a gostar de música clássica





Primo Basílio é um daqueles sujeitos folgazões, sempre na moda, no passado conhecidos como playboys. Gostava de estar “na onda”, conhecia os barzinhos da vila Madalena, bancava o filho de família aristocrata paulistana, apenas um disfarce para o burguesinho com um passado fútil do qual conserva hábitos como frequentar coquetéis sem convite, arrumar uma boquinha em recepções para sair em coluna social e ser assunto da gente fina paulistana.

Sobre música clássica, o primo desconversava. Gostava da pagodagem da TV nos fins de semana, programas de calouros e dizia que curtia Elis Regina, para não passar por inculto (sua preferência era o que a mídia lhe enfiava na cachola). Sobre cinema, disse-me que adorava. Assistiu a quase todos os últimos vencedores do Oscar, os lançamentos de Hollywood e grandes sucessos. Também gosto de alguns, disse-lhe eu, e cutuquei: mas você gosta de “2001, Uma Odisseia no Espaço”, do Stanley Kubrick, primo? Adorei e veria de novo, disse ele. Pois vou armar uma arapuca, pensei comigo. Vamos então assistir ao filme, convidei, e Basílio disse lá em casa. Prometeu salgados, alguma bebida, uísque anda caro demais, deixou entrever.

No sábado, o grupo se juntou na casa de Basílio, com modestos tira-gostos (não deu tempo para fazer compras, desculpou-se ele) e cerveja que já trazia da cozinha nos copos, para não mostrar a garrafa. São copos gelados, disse para justificar. Ligou seu belo home theater, luxo de que ele não abria mão, enquanto todos se serviam, peguei o DVD e coloquei no aparelho. Mal começou o filme, Basílio exclamou: Esse é um dos meus favoritos, sempre atual! Ao final, perguntado sobre a música, Basílio disse que adorava a trilha do filme, mas a única música que reconhecia era uma valsa cujo nome não sabia – era “O Danúbio Azul”, de Johann Strauss II, que ele dançou em festas de debutantes. E o resto da trilha, a do começo, você gosta? Impressionante, uma trilha de impacto. Agora você me deve uma, Basílio. Vamos a um concerto na Sala São Paulo semana que vem. (Assim, armei a arapuca).

Na Sala, após uma abertura que não despertou a menor emoção no primo, a Osesp mostrou um imponente “Assim Falou Zaratustra”, de Richard Strauss. Basílio quase se levantou da cadeira, e cochichou aos meus ouvidos: “A música do 2001!”. Eu apenas sorri. Deleitou-se até o fim, aplaudiu de pé. Saímos para um drinque à nossa amizade e no papo, disse-lhe eu: Sabe que “a música do 2001”, de 1968, do Stanley Kubrick, não é bem uma trilha de filme, na verdade é uma obra-prima de Richard Strauss chamada “Assim Falou Zaratustra”. E é de 1896, bem mais de um século atrás! Pois adorei, disse Basílio. E eu convidei: Por que então não vamos na terça, assistir a outro concerto na Sala? Tenho convites!

Sala cheia, na terça, estávamos lá. Era uma apresentação completa, com solistas, da “9ª” de Beethoven com a Orquestra Sinfônica e Coro do Conservatório de Tatuí. Basílio parece que só se animou no último movimento, após o recitativo. Mas isso é daquele filme maluco, o “Laranja Mecânica”, disse, e eu, psiu! À noite, cumprindo o ritual, juntamos o grupo para assistir ao filme “Laranja Mecânica”, de 1971, também do Stanley Kubrick, e, no meio da loucura, psiquiatria, violência e crimes, Basílio logo sorriu ao identificar a música que ouvira na Sala no dia anterior: e Beethoven havia composto a obra em 1824, tanto tempo atrás! A música adorei, mas o filme é muito violento, disse Basílio. Eu propus assistirmos então a um desenho animado fenomenal para descontrair. Concordou, apesar de ter torcido o nariz. Coisa de criança, mas depois do “Laranja”, muito violento, até aceitaria, disse.

Outra sessão de cinema, outro sábado à tarde, e coloquei para rodar o fenomenal desenho animado “Fantasia”, de Walt Disney, de 1940! Montado quadro a quadro, 24 quadros por segundo, cada precioso movimento do desabrochar das flores em sintonia tão perfeita que nem Steven Spielberg ousaria imaginar, foi antes de ele nascer. Basílio delirou. Mas isso não é para crianças, disse, e respondi que sim, era para crianças de todas as idades. A Orquestra da Philadelphia soava deslumbrante sob a batuta de Stokowsky. À noite, novo encontro na Sala São Paulo. A Osesp brilhou com “A Sagração da Primavera”, de Stravinsky, e logo ao lindo solo de fagote inicial Basílio lembrou-se do filme e olhou-me de soslaio, sem precisar comentar é do filme, é do “Fantasia”, primo Henrique! E a orquestra soou como nunca, montada em cavalos de batalha mais duros do repertório, com destaque para o solo de fagote de Alexandre Silvério e a precisão da timpanista Elizabeth. E metais, madeiras, cordas, tudo!

Terminado o concerto, despedimo-nos, e Basílio agradeceu-me pelo passeio no mundo clássico. Passamos muitos meses sem nos vermos e, um dia desses, parou junto ao meu carro sua velha Harley Davidson, resto dos tempos de bon-vivant, da gorda mesada. Disse-me que comprara uma assinatura da Osesp, havia virado frequentador. Deu adeus e saiu roncando sua máquina, deixando-me com os olhos cheios de felicidade. Pena. Queria ter dito a ele que as pessoas só não gostam daquilo que é bom quando não conhecem, elas gostam apenas do que “re-conhecem”.

(O “Primo Basílio” é um romance de 1878, do escritor português Eça de Queiroz, texto de verdadeira crítica à decadência burguesa da época. Basílio era um dândi, um transviado, diriam nos anos 1950. Daí, tomei do “Primo Basílio”, de Eça, o perfil de meu primo imaginário, com a devida licença do além.)