Da terra sem lei virtual à violência impune real

Enquanto boa parte da população ainda é sugestionada ao erro de que o projeto de lei 2630 (o PL das Fake News) pode comprometer a liberdade de expressão e informação, as empresas de comunicação obrigadas a respeitar as leis e, principalmente, os profissionais jornalistas de fato seguem tomando porrada – literalmente.

E se isto não representa real ataque à liberdade de expressão e informação, já nem vale mais a pena discutir sobre o assunto no Brasil, dada a insanidade extremista já ter deturpado mentes e corações de maneira irremediável.

Fatos a seguir. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) divulgou na semana passada um novo relatório sobre violência contra a imprensa, feito em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e apoiado pela Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner), da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e do Instituto Palavra Aberta. Desde quando a Abert começou a monitorar os casos de violência contra a imprensa, em 2012, apenas em 2019 e 2021, profissionais de jornalismo brasileiros não foram atingidos de forma letal (“letal”, ressalte-se).

O chamado Relatório Abert sobre Violações à Liberdade de Expressão também mostra que a cada dois dias a imprensa brasileira sofreu algum tipo de ataque em 2022. Os dados foram apresentados pelo presidente da entidade, Flávio Lara Resende, no dia 10, em Brasília.

O documento cita a avaliação da relatora especial da ONU para liberdade de expressão, Irene Khan, sobre os casos de violência contra a imprensa: “Quando jornalistas são atacados e mortos, e quando há impunidade para o assassinato de jornalistas em países democráticos, significa que a democracia está sendo enfraquecida”, afirma.

Em 2022, as agressões físicas estiveram no topo da lista de violações ao trabalho jornalístico. Foram 47 casos contra os 34 do ano anterior, em aumento de 38,24%. O número de vítimas também subiu, de 61 para 74, em mais 21,31%.

O relatório ainda aponta uma incidência maior dos vários tipos de violência contra a imprensa em períodos específicos e com viés político. Os ataques em várias cidades brasileiras ocorreram, em sua maioria, nos dias seguintes ao segundo turno da eleição presidencial.

Também foram registrados ataques durante a cobertura dos protestos contra o resultado do pleito, em defesa de um golpe militar, e durante a desmobilização de acampamentos em frente aos quartéis do Exército.

Por outro lado, o documento aponta redução de 5,52% no número de casos não letais e de 7,83% no número de vítimas em relação a 2021. Mas isso, de acordo com Flavio Lara, não é motivo de comemoração.

Diz ele: “Enquanto um jornalista estiver na mira de quem tenta calar ou atrapalhar o trabalho da imprensa, a liberdade de expressão não será exercida em sua plenitude”.

Casos de importunação sexual, que anteriormente não foram registrados, voltaram a aparecer no mapa da violência contra a imprensa. Também os de censura e ataques e vandalismos tiveram aumentos de 100% e 25%, respectivamente.

Entre as violências não letais com diminuição em registros, estão: atentados (-75%), ofensas (-47,17%), injúrias (-50%) e intimidações (-3,85%). O único tópico que se manteve estável, em 2022, foi o de roubos e furtos, com o mesmo número de 2021.

De acordo com estudo encomendado pela Abert à Bites, empresa de análise de dados para decisões estratégicas, em 2022, ano marcado por eleições gerais, mais uma vez, a mídia brasileira não ficou imune às agressões e correntes de ódio virtuais.

Os ataques à imprensa, partindo de aliados do então presidente Jair Bolsonaro, chegaram a 1,32 milhão de posts, uma redução de 6% em relação ao ano anterior, quando chegaram a 1,4 milhão de críticas publicadas no Facebook, Twitter e Instagram.

Os números significam que, em 2022, a imprensa brasileira sofreu 3.600 ataques por dia, 150,7 por hora ou 2,51 por minuto, com palavras pejorativas e de baixo calão contra os profissionais e veículos de comunicação.

O relatório também traz informações sobre a situação do Brasil em relação ao ranking mundial de nações perigosas para o exercício do jornalismo.

De acordo com dados da organização internacional Repórteres sem Fronteiras (RSF), no período de 2003 a 2022, 42 jornalistas perderam a vida no país. Na maioria dos casos, a motivação dos assassinatos estava diretamente relacionada a denúncias e investigações de crime organizado e corrupção.

Ao lado de México, Colômbia e Honduras, o Brasil figura entre os 15 países da América Latina com o maior número de casos de assassinatos de jornalistas nas últimas duas décadas.

Já o Observatório de Jornalistas Assassinados da Unesco aponta que, em 2022, 87 profissionais da mídia foram mortos em todo o mundo, um a cada quatro dias.

O Relatório Abert sobre Violações à Liberdade de Expressão pode ser consultado no site da entidade (https://www.abert.org.br/web/).

São vários aspectos a merecer reflexão por parte de toda a população – e a exigir cuidados de segurança pessoal pelos jornalistas -, mas que pelo menos alguns sejam aqui destacados.

Exemplo: é muito interessante (ironicamente falando) observar que boa parte dos defensores das punições mais draconianas contra a política da corrupção no Brasil antes, seja, agora, os mesmos a atacar a imprensa por… “denúncias e investigações de crime organizado e corrupção”.

Ou seja, leva a intuir que a questão não é roubar, mas quem rouba. Se for do “time”, da nossa patota extremista, tá liberado: pode ficar com presente público, adulterar documento, negociar verba a troco de ouro etc., etc., tudo certo! Se o desmando for do “lado de lá”, a morte!

O fanatismo é igual a esse que leva um torcedor de time de futebol a passar com o carro por cima do torcedor do time adversário sem dó nem consciência.

Na cabeça desse fulano, ele está certo, até porque torcer para outro time não se trata mais de liberdade de escolha (como a de expressão), mas, sim, um sacrilégio, um pecado. E pecado, tal como na época da Inquisição, se responde com sangue, fogueira e eliminação.

E, então, o aspecto pavoroso (da defesa) das fake news: elas representam o antônimo do trabalho da imprensa, que é o de informar com responsabilidade e, claro, levando a verdade em conta.

Esse é o motivo pelo qual, em última análise, muitos ainda defendem a terra sem dono da internet: nela, vive-se uma espécie de “velho oeste norte-americano”, onde os crimes não têm punição e o sujeito que sai expulsando e matando índio da terra dele é herói…

Resumindo, em um mundo imaginário de ficção, é coisa “de família” mentir, xingar, agredir e torcer por ditaduras – senão agir em favor delas. Nesse mundo virtual, as fake news são “do bem” e as redes sociais, apenas defensoras das liberdades.

Como a imprensa tradicional age como um estraga-prazer nesse universo alternativo, ela é julgada como sendo “do mal” e, portanto, merecedora de agressões e violências as mais diversas. Resta saber, afinal, em que mundo o cidadão realmente de bem quer viver – ou matar e morrer.