Calcinhas revelam feminilidade e o óbvio





Brancas, normalmente engomadas e feitas de cambraia, chita grossa ou flanela. As primeiras calcinhas – uma evolução das roupas de baixo – de que se tem notícia tinham como princípio “manter o asseio” e evitar que o corpo ficasse resfriado. Eram usadas, portanto, por baixo das roupas e sempre escondidas.

Revelá-las para o público, de modo a evidenciar a feminilidade demonstrando o óbvio é apenas parte do objetivo do trabalho da italiana Pietrina Atzori. Ela desenvolveu a exposição “Anche il Clero Porta Le Mutande”, trazida a Tatuí e que tem como tradução literal “mesmo o clero leva cuecas”.

Esta é a primeira vez que a mostra é apresentada. Pietrina resolveu “estreá-la” na Capital da Música depois de conversas com Raquel Fayad. A italiana e a coordenadora do MHPS (Museu Histórico “Paulo Setúbal”) se conheceram na Itália, por intermédio de outra artista plástica, Zilamar Takeda.

Em setembro do ano passado, Raquel viajou para Sardenha, onde participou de um projeto de residência artística. Lá, recebeu apoio de Pietrina e teve a oportunidade de conhecer o trabalho dela. “Ela me ajudou com os tecidos; depois, com o contato com as pessoas e a resolver as questões da cidade”, disse Raquel.

Durante a experiência, Pietrina apresentou a ocupação que, até então, consistia em pesquisas e compras, para a artista de Tatuí. “Ela me mostrou o trabalho belíssimo feito com pigmentos naturais”, contou a coordenadora do MHPS.

Impressionada com o resultado, Raquel convidou Pietrina a trazer o labor para o município. “É uma instalação de calcinhas de freiras antigas, que eu garimpei em um convento só de freiras”, explicou a italiana. As peças eram usadas por religiosas das décadas de 1920 a 1950.

A ideia por trás da instalação é de “desnudar o conceito de que as religiosas não são mulheres como quaisquer outras”. “Quando vi aquelas calcinhas, disse pra mim mesma que até mesmo as irmãs são mulheres”, contou Pietrina.

Com olhar artístico e a adição de outros elementos, Pietrina deu às peças de roupas íntimas uma nova utilidade. Elas são um testemunho de que “existe feminilidade no clero”. “Foi um relâmpago, porque eu vi, de súbito, a instalação”, contou.

Para evidenciar as freiras como mulheres, a italiana fez uma “customização”. Ela adicionou cor às peças, de modo a tornar evidente a sexualidade.

“Pensei que poderia pintar com o vermelho, porque isto diz que as mulheres são como quaisquer outras”, explicou, numa referência à menstruação.

Dessa forma, as manchas vermelhas nas peças de roupas tornam explícita a intenção de evidenciar o óbvio, por meio de algo “concedido”. “Eu pensava que as freiras eram mulheres, mas não é verdade que nós pensamos isso. Nós pensamos que as freiras são freiras. Não pensamos que elas são mulheres”, disse.

As calcinhas da instalação vieram de um comércio que tem sido alimentado na Itália por crises na Igreja Católica. Com “queda na arrecadação”, a artista explicou que a denominação opta não por fechar conventos, mas por vender determinadas terras, imóveis ou mudar o uso dos espaços.

Conventos, por exemplo, podem se transformar em albergues, muito comuns na Europa. Por esse motivo, as irmãs são colocadas, cada vez menos, em áreas separadas. Com isso, a direção da igreja consegue equilibrar as contas, aumentar a arrecadação e manter o sistema em funcionamento.

Essa é a razão pela qual muitos materiais, usados por religiosos há décadas, tem ido parar nas mãos de artistas, colecionadores e estudiosos. Pietrina está entre os curiosos que garimpam peças “preciosas”.

“Tenho encontrado muito material a partir destas mulheres, materiais que nunca tinham sido usados comercialmente”, relatou a italiana.

Segundo ela, há um comércio grande na Itália e específico para tecidos. “Eu estou sempre atenta a um certo tipo, precioso”, revelou. O pano cobiçado é especial, uma vez que utiliza pigmentos naturais, produzidos a partir de raízes.

Esses tecidos são matérias-primas das 15 “ceroulas” trazidas para a exposição no “Paulo Setúbal”. As peças apresentam pinturas feitas, também, com pigmentos naturais. “A Pietrina trabalha muito com têxtil e com tecidos que são muito difíceis de serem usados ou mesmo descobertos”, destacou Raquel.

De antemão, a coordenadora do museu revelou que as calcinhas serão expostas de modo inusitado. Elas não serão suspensas em um varal, sendo dispostas em suportes. “Os suportes são todos plantados na terra”.

De acordo com a artista italiana, a montagem também traz outra representação. “Nós somos homens e mulheres, e a humanidade está ligada à terra”, observou. Sendo assim, “os suportes das calcinhas as ligarão ao chão, como uma árvore que tem raízes no solo. Nós somos a terra”, argumentou a italiana.

O suporte representa a freira, que será “plantada”, no sentido figurado, na terra. Essa é a visão da artista para a humanidade. Para ela, homens e mulheres devem permanecer em contato com o solo.

Por instigar a reflexão, Pietrina disse que está curiosa para ver a reação do público. A mostra teria abertura às 19h de sexta-feira, 11, após o fechamento desta edição (17h). O evento contaria com apresentação musical de Cibele Sabioni e Daniel Bortolini, seguida de roda de conversa com a artista.

A instalação pode ser vista até o próximo dia 10 de abril no MPHS, de terça a sexta, das 8h30 às 18h, e aos sábados, domingos e feriados, das 9h às 17h. O espaço fica na praça Manoel Guedes, 12, no centro, e tem entrada franca.

O evento de abertura acontece no mês de comemoração ao Dia Internacional da Mulher (celebrado no dia 8), o qual registrou, ainda, a mostra “Come Dimenticare La Sardegna?” (“como esquecer Sardenha”, de Raquel.

Ela está em exibição no Centro Cultural Municipal até o fim deste mês e tem como temática experiências vividas em residência artística pela autora.

“É uma coincidência. Espero que a minha instalação possa comunicar (o sentido do trabalho) em março, abril e maio, sem problema de tempo”, disse Pietrina.

Para a coordenadora do museu, a mostra italiana também aborda a “falta de reflexão”. Exatamente por isso, ela é acompanhada por uma “roda de conversa” aberta a mulheres.

Em Tatuí, Pietrina também compartilhou conhecimentos por meio da oficina “Exploração em Tecidos Mix Media”. Ela recebeu colaboração de Zilamar Takeda.