Exceto tratar-se de sociopatas convictos- sejam esses caricatos do cinema, tipo Hannibal Lecter, sejam os reais novos idólatras do nazifascismo -, ninguém é a favor de aborto – ninguém mesmo. Apenas isso!
A balbúrdia em torno do projeto de lei 1904/2024 (apelidado de PL dos estupradores), proposto pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), portanto, é só mais uma consequência do profundo abismo de ignorância a engolir o bom senso do país e de parte do planeta nos anos recentes.
É resultado da opção de não se informar mais, substituída pela crença cega em mentiras e versões as mais insanas e maldosas (disseminadas por redes sociais, claro), embora aceitas desde que respondam e/ou ecoem desejos e crenças pessoais (ainda que inconfessadamente pervertidas).
Vida é vida, não? Seja na barriga da mãe ou já no estágio adolescente, na forma de meninos nas esquinas do tráfico, por exemplo. Ou não? Se sim, em qual ponto desse raciocínio “de família” encontra-se a lógica em garantir a vida de um feto e pedir pela execução de menores infratores – como o que quer, explicitamente, importante parte do chamado “conservadorismo”?
Em outras palavras, seria mais ou menos assim: deixa nascer o filho do estuprador, não toma conta, joga para o mais que frágil sistema de apoio social público e, quando não der certo o futuro dessa criança e ela virar “bandido”, aí, sim, o estado deve ir lá, prender e “matar”. Resolvido o problema!
Não há estatística para tanto, mas, realmente, seria muito interessante saber quantos desses “defensores da vida” estão nas listas de adoção de crianças abandonadas…
Ou, mesmo, saber quantos desses políticos boçais retiram parte de seus salários privilegiados com dinheiro público para ajudar (sem propaganda, na surdina, por pura bondade) na manutenção de entidades de apoio a jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade…
Ainda, não seria pecado perguntar quantas religiões que somam renda nada desprezível a partir da boa-fé de seus fiéis, no final das “contas”, sustenta projetos efetivamente de suporte à infância e à juventude, preferivelmente abrindo uma “luz” – divina ou não – a quem, muitas vezes, não possui nenhuma esperança de um futuro minimamente digno…
Tudo isso seria bem mais produtivo que a proposta de uma lei que poderia levar mulheres estupradas a acabarem na cadeia pelo dobro do tempo que os estupradores…
Sequer os boçais param para pensar (“pensar”?…) que, em sua grande maioria, os estupros acontecem dentro de casa e vitimando meninas com até 14 anos… E que significa isso frente à marca de 22 semanas de gravidez?
Significa, parlamentares (ou palermas, alguns?) que uma garota jovem assim pode nem perceber (ou entender) a gravidez dentro desse prazo, tal como, por questões diversas dentro da própria família -, a situação não seja reconhecida em tempo.
Isto levaria a vítima – também criança – a ser, fatalmente, criminalizada duas vezes, então na condição de uma “estuprada assassina”, com todo o peso de uma lei só não mais absurda que estúpida e injusta!
Mas, afinal, que diferença faz isto tudo, não é? Principalmente em ano eleitoral, quando se assiste a uma corrida tão desenvolta quanto célere para se mostrar quem é mais “de família” e “fiel” às crenças extremistas deste novo “ser do bem” – em franco escárnio ao estado laico, seja por oportunismo ou incultura mesmo.
Mas, ok! O assunto é tão polêmico que pode instigar o excesso, até mesmo a quem precisa prezar pelo distanciamento, pela isenção, como a imprensa. Então, fiquemos com mais algumas ponderações, a partir de agora, extraídas de artigo do criminalista e mestre em direito penal Marcelo Aith:
“O deputado Sóstenes Cavalcante propõe a criação (pelo projeto de lei) de duas aberrações: a primeira é a figura da viabilidade fetal presumida nas gestações acima de 22 semanas. A segunda, decorrente da primeira, estabelece uma exceção da exceção, ou seja, passadas as 22 semanas, a mulher estuprada, terá que seguir com a gestação de uma gravidez decorrente de um ato de violência sexual, isto mesmo, terá que carregar um feto fruto de um estupro em seu ventre.
É vergonhosa essa proposta – nem os países fundamentalistas como Irã e Afeganistão têm uma regra tão estúpida como essa.
Os congressistas que apoiam esse projeto de lei esquecem que o Brasil tem dimensões continentais, para além disso, há muitos locais desatendidos ou sub atendidos em relação ao serviço público de saúde.
Nessas localidades, que sequer há médicos, não ocorrem estupros que resultam em gravidez? Como ficam as mulheres grávidas nessa situação, que têm que procurar assistência médica em municípios mais estruturados e longe da sua residência, assistências médicas que demoram meses e meses para serem agendadas? Senhores deputados, o Brasil não se restringe aos seus currais eleitorais.
Ademais, não se pode olvidar que as autorizações legais para a prática do aborto, em especial o aborto decorrente de estupro, estão atreladas à dignidade da gestante.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que a gravidez resultante de estupro é um fator de risco para a saúde mental das mulheres, recomendando que os sistemas de saúde ofereçam suporte psicológico adequado e acesso ao aborto seguro.
Era isso que o Congresso Nacional deveria estar preocupado em legislar, bem como exercer seu mister de fiscalizar se o Poder Executivo está oferecendo atendimento à gestante nessa situação.”
Adiante, argumenta o jurista: “Infelizmente, essas sensíveis consequências da gravidez fruto do ato de violência sexual não serão discutidas em audiências públicas na Câmara dos Deputados, uma vez que essa importante fase da tramitação do processo legislativo foi manietada pela manobra do presidente da Câmara que, em 24 segundos, aprovou o regime de urgência, sem ao menos declinar o número do PL que estavam a discutir. Um verdadeiro atropelamento procedimental.
Além disso, questões como a mortalidade materna relacionadas aos abortos inseguros – feitos nas clínicas clandestinas Brasil afora – foram sumariamente alijados dos debates.
Dados publicados recentemente pelo The Lancet e pelo The Guttmacher Report, apontam que os abortos inseguros são a causa de 8% a 11% da mortalidade materna em países de baixo e médio rendimento.
Algo surreal se pensarmos que essas mortes seriam completamente evitáveis com uma política séria de aborto em situações de violência sexual. Mas, os deputados resolveram não discutir sobre isso.
Outra importante alteração proposta pelo deputado consiste na equiparação do aborto ao crime de homicídio simples. Com isso, por exemplo, o aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, cuja pena é de detenção de 1 a 3 anos, passaria para 6 a 20 anos, ou seja, a pena mínima seria o dobro da pena máxima atual. Qual o sentido disso?”.
A verdade é que, com tanto fanatismo, sectarismo, oportunismo e ignorância, não tem sentido. É apenas bizarro. Nada mais.