O querido professor Cunco sempre dizia que “nunca devíamos deixar morrer a criança que vive dentro de nós”. Quando ficamos adultos, infeliz daquele que se esquece dessa filosofia tão simples e tão profunda ao mesmo tempo. Sem a criança que levamos dentro de nós, ficamos velhos mais depressa, e morremos por dentro, antes da derradeira morte chegar.
Vez ou outra, ao olhar por uma janela, ouço uma sineta tocando, anunciando o intervalo das aulas no “Grupinho Eugenio Santos”, onde estudei. De repente, abrem-se as portas e, eufórica, a criançada dispara em direção ao pátio gramado da escola; no meio da confusão, o Alfredo Brandão, exemplar funcionário da instituição de ensino.
Debaixo do braço, ele leva uma bola de futebol, novinha em folha, e vai escolhendo um menino aqui, outro ali, para um breve jogo de futebol. Os escolhidos saltitam de alegria, os não escalados vaiam em sinal de protesto.
Alfredo, apenas com o olhar, controlava a petizada e, se alguém era um pouco mais rebelde, ele ameaçava suspender o jogo. Depois de escalar os jogadores, ia até o centro do “campo”, colocava a bola no chão e, após o “par ou ímpar” – cujo vencedor escolhia o lado preferido do campo (no outro lado havia duas arvores que atrapalhavam a jogada) -, dava então o apito inicial. E daí em diante era só canela que estourava com as bicancas “a torto e a direito”.
Chefe dos serviços gerais, o Alfredo tinha grande autoridade sobre todos, ele apitava o jogo como se fosse o juiz de um encontro do XI de Agosto versus São Martinho.
Certa vez, num desses inesquecíveis jogos, o “Fio Shazam” pegou a bola e rumou feito louco em direção ao gol. Alfredo apitou um impedimento. Fio fez de conta que não ouviu o apito, continuou a correria e deu uma bicanca em direção ao gol. A bola cobre o goleiro “Passarinho” (conhecido até hoje por esse nome) e desaparece lá no fundão. O time todo do goleador explode em gritos e comemora com fortes abraços.
Alfredo não perdoa: vai até o jogador do chutão, repreende-o e, a seguir, com o dedo em riste, expulsa-o de campo. Kim Correa, outro jogador, protesta, e é expulso também, por desacato!
Alfredo vai até os meninos que lotavam os banquinhos – ou “arquibancadas” – e escolhe dois novos jogadores, que, hilariantes, adentram o campo. E a peleja recomeça!
Futebol de molecada é muito mais ataque que defesa. Já os técnicos de nosso futebol profissional muito fazem para “enfear” o esporte maior do brasileiro, estão mais preocupados em armar a defesa do que preparar o ataque. Essa gente poderia aprender muito com o esporte praticado pela gurizada, cujo objetivo é marcar gols, e não como querem os “especialistas”: sofrer menos gols.
Bem, voltando à peleja dos moleques, o escore até o momento estava em 9x a 7, e prometia aumentar. Nesse momento, o juiz Alfredo acaba de marcar um pênalti a favor do “time do lado de lá”.
É que o Guiga Peixoto segurou o atacante Celso – do Rio das Pedras -, pela camisa, gerando gargalhadas entre as meninas que acompanhavam o jogo. Só o Alfredo não gostou da atitude e assinalou um pênalti. E pronto! Bola na marca, Celso, com a camisa dentro das calças, sai correndo feito louco e… Pimba!… O jogo fica 9 a 8!
Quando a petizada se prepara para dar continuidade ao encontro esportivo, “seu” Juca Orfeu Fogaça toca a sineta, anunciando o final do recreio. Dessa vez, a vitória ficou para o time “do lado de cá”. Mas, amanhã terá mais… e depois também… E, em minha imaginação, terá para sempre.
Todos voltam para suas salas, suados e felizes. Ao longe, fica o Alfredo Brandão, com a bola quase novinha em folha debaixo do braço. Certa vez, cheguei a pensar que ele tinha deixado morrer a criança que morava dentro dele, mas, na hora que se viu sozinho, jogou a bola para cima, controla no peito, deixa a pelota cair na grama, dribla um zagueiro imaginário e chuta no canto do gol, inaugurando o marcador.
Levanta os braços, e vai em direção à torcida, também imaginária. Meio encabulado, olha em todas as direções, pega a bola e volta a ser o funcionário respeitado do “Eugênio Santos”.
Ainda, antes que eu volte à realidade, vejo passar, diante de mim, professores e funcionários dessa instituição: dona Regina Célia, dona Maria Candelária, dona Terezinha Negrão, doutor e professor Geraldo Enéas, “seu” Quinzinho, “seu” Rocha, “seu” Juca, dona Jacira e dona Olga.