Monte Santo de Minas é uma cidade de 20 mil habitantes situada no sul do Estado, pequeno círculo de onde à noite se avista iluminada Mococa, na fronteira paulista. Como acontece com frequência no interior, especialmente em Minas, o nome da cidade se refere a uma paróquia – no caso, a Paróquia de São Francisco de Paulo do Monte Santo (paróquia era um pré-requisito rumo ao status de município). Parece um nome caudaloso, mas perde para Sabará de Minas: Paróquia da Vila Alegre e Sorridente de Nossa Senhora do Ó de Sabarabuçu. Pois Monte Santo, da bateia do ciclo do ouro, terra de bom café – a cidade toma o “b” e exporta o “a”, eu prefiro mesmo o tipo “b” -, tem um fenômeno natural: a população decresce com os anos. Enquanto os rapazes, ao terminar o “grupo” (a escola de antigamente), saíam em busca de estudo ou trabalho em cidades maiores como São Sebastião do Paraíso, São Paulo, Belo Horizonte ou Rio, as moçoilas ficavam sob as vistas de suas mamães, dedicadas às inevitáveis prendas domésticas. Desnecessário dizer que, para os rapazes que ficavam, havia moças bonitas de sobra, braços dados em grupo, costume do passado que os tempos modernos roubaram.
Muitos nomes importantes saíram de Monte Santo de Minas. Do popular Milionário, da dupla sertaneja de raiz, par de Zé Rico; meu avô, juiz de direito que lá começou a longa carreira até desembargador (foi homenageado com seu nome encimando o foro da cidade: “Telêmaco Autran Dourado”). Meu pai, o escritor Autran Dourado, nascido em Patos mas criado desde bebê na cidade, foi celebrado cidadão montessantense com uma bela festa e recepção em toda a cidade. Disse ele que (mesmo com as glórias da carreira, observo eu), foi a mais emocionante de todas as honrarias. Estive nos dois eventos, fiquei deliciado com a recepção.
Em uma birosca comprei dois mimos para meus filhos, dois brinquedos que há algum tempo perderam para os celulares e games: um pião e um bilboquê de madeira para cada um. (Difícil foi ouvi-los dizer, quando entreguei os presentes, “o que é isso?”. Pois eu mesmo tive de reaprender, para ensinar). Ah, trouxe também bolas de gude, para jogar “bola ou búlica”, coisa assim. Claro, também em vão.
Monte Santo, terra de boas famílias, daquelas tradicionais. Uma delas, bastante conhecida na cidade, é a dos Cerqueira Luz, que possui um elo curioso com Tatuí. Paulo de Cerqueira Luz, falecido em Tatuí em 1978, e Maria Ruth Luz, professora de educação artística e musicista, falecida também na cidade (2010), eram montessantenses da gema. Recentemente, Ruth foi homenageada com uma creche municipal em Tatuí que ostenta seu nome na fachada. Paulo e Ruth formavam um casal respeitado, e enquanto ela dava aulas no recém-instalado Conservatório de Tatuí (1954), inicialmente no hoje combalido Casarão dos Guedes, alugado pelo governo da época para abrigar as aulas, ele trabalhava como negociante. Pois Maria Ruth Luz participou desde a primeira reunião do Conservatório, naquele ano, no dia 16 de agosto (temos a ata!). Em 1960, foi eleita para o Conselho Técnico Administrativo, junto com Yolanda Rigonelli e o maestro Spartaco Rossi, entre outros. Ruth e seu marido Paulo, também pintor e músico amador, faziam um belo par artístico: juntos, em 1961, tiveram oficializado como hino oficial da cidade pela Câmara Municipal a obra “Tatuí, Cidade Ternura”.
O casal estabeleceu-se de vez e deixou sementes plantadas para o futuro: muitos músicos importantes e cidadãos de Tatuí passaram pelas mãos da professora Ruth, tida como um doce de pessoa mas uma instrutora severa. (Eu, particularmente, não vejo como formar bons músicos sem muita exigência, disciplina rígida e dedicação. Não conheço bom músico formado só no “muito bem, muito bom, parabéns”). Ela ainda se dedicou à composição com interesse especial, e entre suas obras está também o hino de Caconde, sempre em parceria com o companheiro de vida, Paulo de Cerqueira Luz.
Meu pai, criado em Monte Santo até os 17 anos (quando meu avô foi transferido para a capital), nasceu em 1926, sendo portanto apenas dois anos mais velho do que Ruth Luz. Seus irmãos, todos também realizados profissionalmente na capital mineira ou no Rio de Janeiro, e minha tia Francisca, que, pela idade, seguramente deve ter tido algum convívio com Ruth Luz seja na escola, nas festas, folguedos, passeios de mãos dadas… Infelizmente, com meu pai já em outro destino, assim como todos os irmãos dele (exceto minha tia), resta-me apenas a ilação de uma possível convivência, ou ao menos um possível conhecimento da família Luz. Foi lá, em Monte Santo, que meu pai se inspirou para criar sua cidade mítica, Duas Pontes, que perpassa toda sua longa obra literária. Foi também de Monte Santo de Minas que ele trouxe o jeitão mineiro, interiorano e circunspecto, retrato do artesão da palavra escrita que entrou para a história.
Não sei se acredito em acaso, e nem interessa muito, porque não acrescentará nada ao mundo minha crença particular nisso ou naquilo, além de minha fé própria, que é do meu arbítrio. Mas acredito muito em destino, em predestinação, seja pela vontade de cada um ou por algum tipo de interferência superior – longe de mim querer compreendê-la, apenas a sei existir. Pois quis esse destino levar um filho de montessantense, pequenina cidade de Minas, a ser o diretor da mesma escola onde uma outra cidadã de Monte Santo fez sua vida e carreira. E me sinto muito bem sabendo desse laço oculto. Cumplicidade de mineiro.