Como manifestação humana, a expressão artística às vezes tende a ser sofisticada: o artista quer cada vez mais desenvolver sua técnica, sobrepondo-a à sua imaginação. Vai às mais profundas contradições, confusões mentais e até demência, mas se não o faz de forma figurativa, como Salvador Dali (1904-1989), ele se distancia do público. A arte pode ser complexa, como a de Qorpo Santo (1829-1883) – José Joaquim de Campos Leão -, nosso poeta, escritor e dramaturgo gaúcho que chegou mesmo a passar uma curta temporada no manicômio. Louco que era, foi tido como uma espécie de precursor “tupiniquim” do surrealismo e do Teatro do Absurdo de Arrabal e Ionesco. Nada. Parece que o surrealismo sempre foi um estado de espírito “anormal” (daí surreal), desde as telas de Hyeronimus Bosch (1450-1516), quatro séculos antes do brasileiro. É onde se transfigura a teratologia do pintor: maus espíritos e demônios, anomalias com tantos detalhes que exigem um bom tempo de apreciação, por parte do público, para compreender a obra. Pois Qorpo Santo foi personagem de suas personalidades múltiplas, de seus espíritos enlouquecidos.
O simples tem que ser belo, e em suas poucas informações tecer um quadro, uma escultura, uma poesia ou uma música. E o que faz o belo – vejo assim – é a feminilidade da obra, mesmo que ela represente um homem. Uma das obras-primas de Michelangelo (1475-1564) é seu Davi, uma escultura de seu desejo, envolta nos mistérios das afeições particulares do autor. A despeito do torso levemente robusto, a figura do jovem Davi tem traços sinuosos, graciosos, femininos até. Na música, clássicos como Mozart e Haydn usaram frases de contornos e terminações melódicas a que chamamos femininas. Pois se no classicismo assim o foi, o que aconteceu no período barroco, que o precedeu, e no romantismo, que o seguiu, ambos de extrema complexidade na costura musical? O barroco tinha suas regras, e se essas não fossem seguidas, a profusão de notas e acordes em tantas vozes simultâneas em contraponto resultaria em grande confusão.
E a poesia, que ora nos vem parnasiana, complexa, ora com o requinte da simplicidade? É uma frase solta, às vezes, em tom coloquial, até, mas que traz em si algum “achado”, algum truque a seduzir o leitor. Fernando Pessoa (1888-1935) é um mestre português dessas minúcias: “E mais que isso, só Jesus Cristo. Que não entendia nada de economia nem consta que tivesse uma biblioteca”. Uma troca de palavras simbólicas – Cristo x economia e biblioteca (símbolos do saber) -, seriam para o poeta desnecessidades para quem está acima de todo o conhecimento. E antes disso Pessoa já havia desmistificado o saber: “Livros são papeis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta. A distinção entre nada e coisa nenhuma”. A intelectualidade e o vigor criativo de Pessoa o credenciam para sentenciar que livros não são mais do que meras “folhas de papel pintadas com tinta” – e o estudo, “coisa indistinta”, o que não se distingue. E negando tudo: a distinção entre “nada e coisa nenhuma”.
Há brasileiros mestres nessa arte da simplicidade, como Drummond (1902-1987), o poeta maior. Veja em “Confidência de Itabirano”: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói”. Palavras simples que levam o leitor a refletir sobre o ouro, gado e fazendas (riqueza), em contraponto à situação do poeta, funcionário público, símbolo da vida simples e regrada que ele próprio levou, vivendo dos pequenos cargos que lhe permitiram o ofício de escrever. E a fotografia de Itabira na parede, o que lhe faz sofrer, é esse pedaço do passado indelével que o acompanha, imóvel. O rasgo de inspiração vem na última frase: “mas como dói” (poderia ter dito “saudade”, mas o “achado” lhe apareceu no caminho, como a pedra no de José: solução poética, pincelada de gênio).
A simplicidade sempre foi marca de Vinicius de Morais: em “Filhos”, ele exerce o benefício da dúvida. Bom pai, amante nada parcimonioso, o poeta deixa no ar a dúvida: “Filhos… Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos / como sabê-lo?” “Tê-los” e “sabê-lo” são as duas pontas do dilema de se ter ou não os filhos. Expressões nascidas de verbos, em movimento, do jeito que se fala: “E então começa a aporrinhação: coco está branco / coco está preto / bebe amoníaco / comeu botão”. Palavras simples, do dia a dia, cruéis, até (“bebe amoníaco”), fazem o pai horrorizado achar melhor não “tê-lo”. Mas – e aí reside o conflito do belo poema -, se não for assim, sem conhecer “ser pai”, como sabê-lo (o ter filhos)?
Chico Buarque é um poeta versátil. Vai da complexidade do operário em “Construção” (“beijou sua mulher como se fosse a última”), à simplicidade interiorana e singela, com sua “Banda”: “Eu estava à toa na vida / o meu amor me chamou / pra ver a banda passar / cantando coisas de amor”. E esbanjando maior singeleza, em “Gente Humilde”: “São casas simples com cadeiras na calçada / e na fachada escrito em cima que é um lar / pela varanda flores tristes e baldias / como a alegria que não tem onde encostar”. Paisagem bela porque simples.
O maestro Eleazar de Carvalho tinha uma genial para definir uma pausa, um silêncio: “A pausa é como uma faca” (gritando a última palavra)! “Sem lâmina / nem cabo!” (com os devidos acentos fortíssimos sobre as primeiras sílabas de lâmina e cabo). O discurso simples e belo ou o silêncio podem ser mortais como uma faca. Mesmo que sem lâmina. E nem cabo.