Olhando algumas fotos antigas, lembrei-me que, hoje, a denominada viela São Manoel, era chamada de Sossega Leão (alguma ligação com a fábrica e o time São Martinho). Lá existia uma serraria pertencente à família Guedes, onde, todas as semanas, muitas toras de madeira eram descarregadas para serem desdobradas em tábuas. Eram levadas em fortes carros de madeira, puxados por 12 musculosos bois.
Aquele som estridente, choroso e musical que saia das grandes rodas dos carros era ouvido ao longe: do Marapé, do asilo (que ficava onde hoje é a Concha Acústica), da cadeia pública (hoje Museu “Paulo Setúbal”) e, se o vento ajudasse, até na Praça da Matriz, na rua General Carneiro (hoje 11 de Agosto).
Quando os irmãos Luciano compraram um caminhão da marca Tornikrof, também para transporte de madeiras, foi uma comoção. Todo bom tatuiano queria dar uma olhada naquela máquina de outro mundo.
Mas, logo a seguir, a família Cassemiro apareceu por aqui com um caminhão Scania Vabis 70 Maçarico, um avanço nacional. E a coisa não parou por aí: o senhor Fermino Dias, que trabalhava com transporte de animais, comprou uma Scania 76, coisa mais linda do mundo.
Daí chegou o progresso, a Construtora Rabello se instalou em Tatuí. Estava construindo a rodovia D’oeste, como era chamada a Castello Branco. A Rabello trouxe empregos, tecnologia, costumes diferentes… e Tatuí nunca mais seria a mesma.
Durante essa efervescência histórica por que passava a terra de Chico Pereira, lembro-me do senhor Lupércio, que por todos era chamado de “Lupa”. Ele era um antigo funcionário da Fábrica São Martinho, mas, por ser muito empreendedor, desligou-se da empresa e, com o dinheiro do tempo de serviço, comprou uma carroça, que era puxada por um burrinho chamado “Patrão”. Lupa e Patrão trabalhavam com pequenos transportes.
Material de construção, madeiras, limpeza de terrenos e mais o que aparecesse: chamavam o Lupa, muito conhecido e querido por toda a cidade. Berçinhos para novos moradores ou despejos de maridos infiéis? Chama o Lupa e seu burrinho Patrão!
Foi num desses vai e vem de transportador de coisas que o Lupa foi procurado pelo Bidé, um cidadão folclórico e muito popular na cidade. Ele queria que o Lupa transportasse seus bens domésticos de uma casa para outra. A distância não era grande, era até pertinho, e, por isso, ele cobrou também pouquinho. Preço acertado, mudança em andamento com muito cuidado, bem acomodada na carrocinha: o fogão Daco quatro bocas, um sofá vermelho com três lugares, uma mesa capenga, quatro cadeiras de palhinha, uma cristaleira, um quadro da Santa Ceia, um guarda-roupas com espelho trincado, uma cama e mais alguns outros objetos que compunham uma casa simples desse tempo. Tudo foi entregue quase inteiro. Bidé pagou e Lupa foi embora, satisfeito.
Lupa voltou à sua rotina de trabalho, de segunda a domingo – ele trabalhava aos domingos também, afinal, estava ajudando muitos operários da Fábrica São Martinho, que só podiam fazer suas mudanças nesse dia sagrado para alguns.
Num certo dia, o Lupa notou que sua carrocinha estava meio diferente: nas tábuas laterais apareceram pequenos furos; nas madeiras do assoalho, também pipocavam buracos que, olhando por eles, dava para ver as pedras das ruas cascalhadas.
Lupa ficou desconfiado e muito triste, mas, ao fazer um carreto de uma mesa para um seu cliente, teve a confirmação: o dono da mesa comentou com ele que, ao descarregar a encomenda na frente da residência, havia mais pó de serra na calçada do que mesa. Pó de serra? Não era pó de serra, era cupim! Uma turma numerosa e esfomeada de cupins estava comendo todinha a sua carroça.
Lupa fez de tudo pata salvar a carrocinha, mas os malditos cupins tinham saúde de ferro. Veneno, querosene, gasolina… nada resolvia: seu ganha-pão estava condenado!
Ele chegou a levar a carroça numa benzedeira muito boa na época – curava quebrante, mau-olhado, torcicolo, coração partido e recaída em gestante… Vai se ela também matava cupins. Não matou! Lupa desistiu, entregou na mão de Deus, ou melhor, dos cupins.
Muitos amigos do desolado Lupa, vendo a situação, resolveram fazer uma “vaquinha” para levantar fundos para uma nova carroça. E foi o que aconteceu: uns trocados aqui, outros ali e, pouco tempo depois, o Lupa ganhou uma carroça novinha em folha; madeira das boas, pintadinha, um luxo. Lupa pulou de alegria ao receber o presente, menos o seu burrinho Patrão, que ficou emburrado com a notícia.
Até o Bidé ficou feliz, porque estava com complexo de culpa, pois sabia que aquele monte de cupins tinha vindo de seus móveis, já acabados em minúsculo pó desses insetos, que, de tão vorazes, tinham comido até o seu fogão de marca Daco.
Lupa voltou, então, a fazer os seus carretos, mas, por precaução, colocou na traseira de sua carrocinha, uma tabuleta onde estava escrito:
“Para contratar o Lupa, estou sempre afim,
Basta não ter em seus móveis, muitos cupins.
Agradecemos a preferência!”.