Brasil: minha primeira crise





Ela surgiu antes de eu me achar gente. Quando comecei a me descobrir no mundo, vivi a ditadura no colégio, com a família, amigos e amigas. Senti a censura e a mordaça imposta a todos os brasileiros. Entre ordens e desordens, ingressei no curso superior de música da Fefierj, hoje Uni-Rio, tendo o gen. Jayme Ribeiro da Graça, do SNI (Serviço Nacional de Informações), como interventor-diretor. Alunos chegavam a ser revistados por policiais na entrada, pois sabe-se lá o que jovens artistas poderiam tramar contra o regime. Fui ameaçado em classe por uma opinião divergente sobre flautas de osso indígenas, que o general entendia inferiores às “civilizadas”, modernas, e apontou para mim: “E o senhor, cuidado para não virar flauta, ouviu?”.

E veio a data cabalística, 7/7/77, minha partida para Boston. Queria apenas viajar, estudar e arrumar trabalho, e lembrei Caetano: “No dia em que eu vim-me embora / minha mãe chorava em ais / (…) e eu nem olhava pra trás”. Nos EUA, ouvia notícias da ditadura no Brasil pelo rádio de ondas curtas, mas dela o país somente começou a escapar com a anistia, em 1979. Revistas enviadas por minha mãe, enroladas com etiqueta selada de fora, era como eu acompanhava o que acontecia em meu país. Um susto: acho que em 1979, quando vi em uma das capas um sujeito barbudo, cabelo crespo e camisa de malha branca suada à frente de um batalhão de metalúrgicos, parecia coisa  dos líderes ítalo-americanos Sacco e Vanzetti, em 1920. Esses caras estão loucos, pensei, vão morrer todos. O barbudo atendia pelo apelido de Lula.

Vivi crises americanas, como a do petróleo. Graças a ela, comprei um Olds Delta 88, motor 5.0, 8 cilindros em “V”, por módicos 300 dólares, ninguém queria um beberrão daqueles. Dirigia apenas para levar o instrumento para um concerto, ou um passeio de fim de semana. O americano estava cansado de guerra como a Teresa Batista do Jorge Amado, já havia passado por vários conflitos, entre eles duas Grandes Guerras, mais as da Coreia e do Vietnã, entre outras. Eram dever cívico os “Victory Gardens”, hortas domésticas estimuladas para o povo suportar as crises entre as guerras, como na Grande Depressão de 1929/30, de efeitos devastadores. Prosseguindo, nos EUA vi a crise com o Irã, e o famoso fiasco do Jimmy Carter, quando 52 americanos sequestrados e mantidos reféns serviram de espoleta para uma desastrada ordem presidencial: um super-helicóptero de combate matou vários e feriu muitos outros ao se chocar contra um avião-tanque C-130. Houve muitos protestos até durante as madrugadas, tanto de parte dos americanos quanto dos estudantes iranianos da cidade.

De volta ao Brasil, a primeira grande crise econômica de grande vulto, no vácuo do caminho de volta à democracia, com a eleição indireta de Tancredo e a posse de Sarney, na falta do primeiro. A bomba econômica ficara enterrada durante anos, maquiada pelos artífices Delfim Netto e Mário Simonsen, cuja mágica fazia sumir do balancete produtos com preços disparados e agregar alguns que não subiram (e nada interessavam), baixando a média. A maquiagem caiu com o retorno à livre expressão: logo emergiu da lagoa o monstro da inflação galopante, cidadãos compravam tudo logo que recebiam os salários, o dinheiro acabava em poucos dias. Eu era um simples músico, mas da classe média para cima havia meios de se aplicar no chamado “overnight”, que chegava a pagar 1% ao raiar do dia. Era popular uma pasta de plástico com divisórias onde guardávamos as contas nossas de cada dia para pagar no dia seguinte, enquanto o salário aplicado ilusoriamente rendia.

E veio o confisco do Collor, que deve ter feito até o Fidel Castro corar: não havia pensado em nada parecido nos tempos mais duros da revolução cubana, desde 1959. Menos azar teve quem, como eu, tinha contas a pagar. Poupança congelada, meu boleto viria a saldar as muitas prestações de um terreno que havia comprado, havia essa “liberalidade” para devedores comprovados. O tempo passava e vários planos, moedas, trios de zeros eram cortados das cifras. Na Osesp, eu ganhava em 1985 exatos Cr$ 2.622.851,00 mensais, assinados em minha CTPS!

Em 1994, com Itamar Franco, uma equipe de jovens economistas da melhor formação, como André Lara Resende, Pérsio Arida e Pedro Malan, bolou um sistema em busca de cortar “as raízes da inflação pós-ditadura”, como disse Chana Joffe-Walt, em “Como Dinheiro de Mentira Salvou o Brasil” (trad. livre), publicado em 2004. Deu certo, mas, quase 20 anos depois, os gastos públicos, vencimentos dos altos servidores e mordomias haviam chegado às nuvens, e a classe política e empresários foram ao paraíso. Ministérios multiplicaram-se e com eles cargos, estatais, contratos, grandes ralos de dinheiro com fachada de programas sociais e projetos absurdos que deram crias, como os impostos, qual fossem coelhos.

Sobre a crise econômica e política deste ano não vou comentar, todos a sentem, e já basta. Fiquei na do regime pós-64, na do Sarney, na do Collor. A de 2015, caravela monstruosa mais perdida na calmaria do que o navio de Cabral, é um naufrágio exposto à visitação pública. Da proa da nau, telescópios vêm nada mais do que trevas. Aquele genial anúncio da TV sobre peças íntimas para meninas adolescentes do Washington Olivetto de 1987, estrelado por certa Eliana, na época com 13 anos e hoje apresentadora de TV, criou uma frase de efeito, depois eternizada e feita multiuso. Parodiando-a, eu diria “a primeira crise a gente nunca esquece”.