“O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Uma das máximas ainda a marcar o período do regime militar no Brasil, a frase tem como autor o militar e político Juracy Magalhães.
Foi proferida logo depois de ter sido nomeado embaixador nos Estados Unidos pelo governo militar, em 1964. Magalhães era dirigente da UDN, partido que conspirou a favor da ditadura, e havia encerrado o mandato como governador da Bahia em 1963.
Depois de breve passagem pela representação brasileira em Washington, foi nomeado ministro da Justiça e, depois, chanceler, função desempenhada entre 1965 e 1967.
Antes, já havia apoiado a revolta tenentista da década de 1920 e, na sequência, o governo de Getúlio Vargas, tendo, então, assumido como “interventor federal” o governo da Bahia, cargo que, mais tarde, voltou a ocupar, então como indicado indiretamente pela Assembleia Constituinte estadual, em 1935.
Figura, portanto, não necessariamente afeita à democracia (coincidência a se observar o atual cenário do humor político brasileiro?). É lembrado, no momento, tão somente pela famosa frase, ainda presente, apesar do tempo, na memória de outrora saudosistas do autoritarismo, atuais adeptos de um novo golpe de estado via extrema-direita.
A epígrafe de Magalhães, significativamente simbólica do servilismo verde e amarelo aos interesses norte-americanos, entretanto, merece atenção pela ironia na atualidade, sobretudo quanto à artificial polêmica criada em torno do voto eletrônico.
A ironia está em que, antes, o Brasil entendia ser “tudo de bom” o que vinha dos EUA, menos a democracia (que eles tanto sustentam valorizar). O discurso, na verdade, servia apenas para reforçar a ideia de ser bom seguir como consumidor de terceira classe e exportador de comodities de primeira.
O tempo passou, mas não o apreço pelas ideias retrógradas, tampouco o discurso de “soberania” – ao menos incoerente quando da parte de quem se dispõe à prostração ao estrangeiro – desde que, claro, seja “conservador”.
Há pouco, o discurso poderia ter sido um pouco menos incoerente, com um golpe de estado por lá, felizmente frustrado – até porque os militares norte-americanos (que, tal aqui, têm a força!) são verdadeiramente democratas e não apoiaram os desejos alucinantes e totalitários de Donald Trump.
No entanto, a estratégia golpista já foi posta (e nisto se apoiam os extremistas locais a torcer, no momento, para que o patético episódio norte-americano recente seja exemplo de algo “bom” para o Brasil).
Basicamente, a ideia é a seguinte: “a gente coloca dúvida na cabeça das pessoas (sobre a urna eletrônica, no caso), arma os do nosso lado e tentamos as eleições no voto. Se perdermos, dizemos que fomos roubados e, com a ajuda de nossa nova milícia ‘popular’, tomamos o poder à força”.
Pouco importa, neste sentido, se o velho discurso sustenta um mínimo de lógica, ou não. Exemplo: lá, o presidente derrotado questionava as urnas em papel, certamente indicando a necessidade de um sistema eletrônico; aqui, questiona-se o sistema eletrônico, defendendo-se o retorno ao papel…
A incoerência é desconcertante, explícita – lembrando, ainda, envolver figuras supostamente “camaradas”… Em ambos os casos, não obstante, nada de provas quanto a fraudes, só falácias e “fake news”.
Outra ironia: no momento, o Brasil é mau exemplo em quase tudo, particularmente no combate à pandemia e no meio ambiente. Porém, o processo eleitoral do Brasil é modelo em todo o mundo.
Ou seja, algo hipoteticamente a dar orgulho aos verdadeiros nacionalistas. Contudo, não. Mais esta coisinha que restou a prestar bom serviço ao país é posta em xeque exatamente por quem mais deveria ter orgulho dela.
E aqui, por sua vez, a população precisa ficar muito atenta, pois a operação ardilosa de suspeição quanto às urnas eletrônicas já segue em pleno curso.
Portanto, vale muito a pena observar artigo do advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, Ronaldo Lemos, publicado na Folha de S. Paulo esta semana.
Ele conta estar circulando, pelo WhatsApp, um vídeo em que aponta a falta de segurança nas urnas eletrônicas. “O protagonista desse vídeo sou eu e, obviamente, não autorizei seu uso. Ele foi gravado em 2017 no programa ‘Estúdio i’, da GloboNews”, ressalta.
“Na versão que circula na rede, o vídeo é editado e tirado de contexto para fazer acreditar que as urnas brasileiras não são seguras. Essa tentativa de propaganda com a minha fala é enganosa e absurda”, segue ele.
“No vídeo original, falo de como uma conferência de segurança da informação nos EUA — a Defcon — fez um teste de segurança com alguns modelos de urnas eletrônicas e todas tiveram sua segurança quebrada. Na versão circulada no WhatsApp, cortaram o trecho em que falo claramente: ‘A gente tem que lidar com calma, as pessoas podem achar que tem a ver com o Brasil’”.
E sustenta o pesquisador: “Nenhuma das urnas que foram testadas é a utilizada no Brasil. O objetivo da minha fala era alertar para a questão central da cibersegurança em qualquer dispositivo digital, ainda mais nas urnas. Esse alerta foi ouvido e implementado”.
O resultado é que, reforça Lemos, em mais de 25 anos de uso nunca houve indício ou comprovação de fraude na urna brasileira. “Além disso, fraudar uma eleição presidencial por meio de ataques às urnas eletrônicas é tarefa na prática impossível”, garante.
E explica: “Seria necessário atacar fisicamente, uma a uma, centenas de milhares de urnas. Cada um desses ataques precisaria ser bem-sucedido. O esforço necessário teria de ser oculto e demandaria uma logística maior do que a própria realização das eleições nacionais”.
“Então, só para deixar claro: a chance de alterar o resultado das eleições presidenciais atacando as urnas eletrônicas é zero. Essa chance é menor do que se a votação fosse feita em papel, que demanda mais fiscais de mesa e de contagem.”
O professor, então, aponta a razão da postagem: “Com isso, fica a constatação de que a circulação do meu vídeo na internet não tem o mesmo objetivo que o meu, de promover a cibersegurança das urnas. O objetivo é outro: disseminar medo, desinformação e confusão na sociedade brasileira”.
“Mais do que isso, essas peças de propaganda sensacionalistas sobre as urnas têm o objetivo de gerar distração. O que o Brasil deveria estar discutindo sobre 2022 é em quem votar, e não sobre como votar”, observa.
Em seguida, defende a “identidade digital”, a qual, entre outras coisas, possibilitaria o voto até pelo celular, além das urnas. “O país não deveria estar falando sobre trazer de volta o papel, que representa o passado. Deveria estar falando sobre construir o futuro”, conclui.
E é exatamente isso. Resta saber se a maioria da população quer mesmo o retrocesso, marcado por um passado obscuro e violento, arcaico, ou um futuro não apenas tecnológico, mas muito mais comprometido com a liberdade, a justiça social e a fraternidade.