O ano era 1963. Acomodados em nossos bancos de ferro fundido com assentos e encostos de madeira, fixados no chão, em fila, estávamos prestes a percorrer o Nordeste de trem. Os bancos não eram novos, eram da década de 1930, mas mantinham-se perfeitos. Havia uma expectativa em todos, uma silenciosa excitação. Todos atentos.
O caminho a ser percorrido ia do sul da Bahia até o Rio Grande do Norte. Muitos quilômetros, mais de 1.500, mas o tempo de viagem era curto. Pouco tempo para observar toda a paisagem. Por isso, nessa viagem, as cidades seriam contornadas. Não dava tempo de vê-las.
Nem percebi que o trem já havia partido, mas ainda estávamos em um local próximo ao rio São Francisco, pois o “guia” dessa viagem contou-nos a respeito das carrancas dos barcos que percorrem esse rio, chamado de “Rio da Integração Nacional”, epíteto recebido por ser o caminho de ligação do Sudeste e do Centro-Oeste com o Nordeste.
Fiquei intrigado com as tais carrancas, amuletos de proteção dos barqueiros contra tempestades, perigos e maus presságios, que espantavam os animais e os duendes que, à noite, saíam das profundezas das águas do rio para tentar mulheres e roubar crianças. Ou das profundezas das mentes supersticiosas.
Distraí-me por algum tempo pensando nisso, mas a viagem prosseguia junto com as explicações, e o trem já se aproximava da divisa da Bahia com Sergipe. Passou sobre o rio São Francisco nas proximidades da cachoeira de Paulo Afonso, com suas quedas d’água de mais de 80 metros de altura e que alimentam as usinas hidrelétricas de mesmo nome.
Passamos rapidamente pelo agreste baiano, tanto que nem meu pensamento acompanhou o ritmo da viagem. Logo que o trem entrou em Sergipe, apesar de atravessarmos um extenso canavial, o guia turístico chamou nossa atenção para os coqueiros do lado direito do trem.
– À direita vemos os coqueirais de Sergipe que, junto com a cultura da cana-de-açúcar, compõem a base da agricultura desse Estado e de Alagoas! – comentou.
Ah, em um piscar de olhos entramos nas Alagoas. Mais precisamente no sertão alagoano, justamente onde Delmiro Gouveia instalou sua fábrica de linhas “Estrela”, que chegou a produzir 200 mil carretéis por dia, mas foi pressionado a vender aos concorrentes estrangeiros e, não aceitando, acabou assassinado.
Por uns instantes pensei no assunto, associando com a história do Barão de Mauá, que havia lido poucos dias antes. Esses homens não tinham sorte, deduzi. Meu pensamento ficou inconclusivo, pois o guia começou a descrever a região em que o trem passava nesse momento:
– Aqui é o agreste, uma região de transição entre a Zona da Mata, que é bastante úmida, e o semiárido, uma região muito seca! Enquanto que na Zona da Mata predominam os latifúndios, no agreste predominam os minifúndios dedicados à produção de subsistência e à pecuária leiteira! – prosseguia com as explicações.
– Do lado direito observamos diversos locais com a criação de gado, junto com roças de feijão, mandioca e agave! – sua voz forte e firme descrevia a paisagem.
Agave? Nunca ouvi falar disso. Antes que eu perguntasse, um colega levantou sua mão, indagando.
– É do agave – “agave sisalana” – que retiramos o sisal! – foi a resposta. – E com o sisal fabrica-se cordas, sacos, bolsas, tapetes e até estão utilizando nos estofamentos dos automóveis que agora são fabricados no Brasil!
Ah, porque ele disse isso! Lembrei-me que meu avô havia comprado um Renault Dauphine zero quilometro. Preto, lindo. Essa marca foi uma das primeiras que fabricaram no Brasil. Nisso, o guia chamou a atenção novamente:
– Do lado esquerdo vemos as caatingas! – disse, dando ênfase aos dois “as” … caa-tinga! Nunca me esqueci desse detalhe.
O trem, nesse momento, cruzava o Estado de Pernambuco, bem longe do litoral. Ouvíamos a descrição da paisagem, com muitos detalhes nas explicações:
– Esse é o sertão nordestino. É uma região de clima semiárido que começa no norte de Minas Gerais, passa pelo interior da Bahia e vai até o Ceará e o Rio Grande do Norte, atravessando todos os demais Estados do Nordeste!
– A caatinga é a vegetação adaptada ao clima! – expôs. – Esse nome vem do tupi-guarani e significa “mata branca”, uma referência à cor dos troncos das plantas que, nos períodos mais secos, perdem sua folhagem! – continuou a descrever.
– A vegetação conta com poucas árvores, predominando a vegetação arbustiva, com pouco mais de dois metros de altura, e a herbácea, menor ainda! As bromélias e os cactos são as principais famílias de plantas da região!
Cactos! No mesmo momento associei com as paisagens que via nos filmes de faroeste. Roy Rogers era o mocinho preferido na ocasião. Ah, e havia um seriado do Zorro… Mas, antes que meu pensamento divagasse, outro nome chamou minha atenção:
– O xique-xique e o mandacaru têm raízes que armazenam água! Esses são os cactos nordestinos! –comentou e descreveu como eram tais espécies espinhentas e de casca grossa.
Muitos riram com o nome xique-xique. Nem percebemos que a viagem estava chegando ao fim. Chegamos em Natal, no Rio Grande do Norte.
Blééééémmm! Blééééém! Bléééém! Era o “seu” Jair que, tocando a sineta, avisava que aquela aula chegou ao fim. O professor Paulo Ribeiro juntou seu caderno de anotações, um livro e alguns papéis, colocando sob seu braço esquerdo, despediu-se da classe e se foi.
Como era a última aula, levantamo-nos todos e saímos, todos comentando a respeito da nossa viagem virtual pelo Nordeste. Depois de 50 minutos de silêncio, era momento de conversar, rir, brincar.
Esse foi o tempo da “educação bancária”, tão criticada pelos pseudoeducadores que nunca entraram em uma sala de aula e que estão destruindo a Educação brasileira, criando legiões de semialfabetizados que desconhecem até mesmo o país em que vivem. Hoje nem os bancos escolares se salvam. Mesmo sendo novos não suportam nem um ano letivo sem que sejam destruídos.
Obrigado, seu Paulinho, pelas viagens em que me conduziu na primeira série do curso ginasial, em 1963!