Resolvi, no ano passado, revisitar Machado de Assis. É como voltar a ouvir muito Bach e Mozart antes de retomar os contemporâneos. Pois lembro-me de meu pai dizendo que Machado era a fonte, era onde ele bebia seu vinho literário, a técnica da construção minuciosa e elaborada, porém com simplicidade, visão que serviria tanto a um projeto arquitetônico ou a uma sinfonia ou ainda um improviso de jazz. Dizia ele, e disso me lembro bem, que se todo mundo lesse Machado de Assis menos viadutos cairiam, menos pacientes morreriam nas mesas de cirurgia, menos desastres aconteceriam.
Nem sei quantas vezes vi meu pai sentado na cadeira de balanço do escritório, desde cedo da manhã, nas mãos algum Machado outra vez, quem sabe coisa de 30 vezes, sempre as velhas edições saindo das estantes para as mãos dele e vice-versa. A técnica de construção literária, composição dos personagens, as coisas, roupas, detalhes dos vícios e virtudes de cada um deles desenhando o caráter de cada um, os capítulos engendrando acontecimentos futuros, e a omissão proposital de algum fato para que o autor remeta a algum capítulo passado, um truque de mestre.
Pois li a maior parte da obra de Machado. Agora, para tentar desenvolver uma escrita própria, em meu aprendizado, voltei a lê-lo. Antes, preciso retornar machadianamente ao meu colégio, com certeza o melhor do Rio na época. E digo que valeu a pena ler Shelley, Byron, Rousseu, tudo no original. Diziam: virem-se, há dicionários para isso. E assim também aprendemos bom inglês e francês, até declamando de cor Abrahão Lincoln, em “Gettysburg Address”: “Four scores and seven years ago, our fathers brought for, in this country, a new nation…” (“Oitenta e sete anos atrás, nossos pais construíram, neste país, uma nova nação”). Passaram pelos nossos bancos escolares Mário Henrique Simonsen, Delfim Netto, Arnaldo Jabor, Edu Lobo, Vinicius de Morais, Pedro Malan, Armínio Fraga, Paulo Coelho e os mais novos, como Lulu Santos, Cazuza e Lobão. Todos com sólida formação escolar, leram Machado, José de Alencar, Becket e José Lins do Rego, que andava meio “proibidão” por causa de algum pecadilho inocente.
Pois foi com Machado que cedo descobri o que era “algibeira” (bolso de paletó), coturno (bota alta com cadarço), e “de altos coturnos” (de grande importância). E provocando risadinhas pelos cantos da sala, alguém leu que fulano retirou de sua “boceta” uns trocados. Pois que boceta é apenas uma pequena bolsa, onde se levava alguns réis a rapé. Não sabendo a palavra, toma dicionário, bendito costume que mantenho até hoje. Seja para conferir a grafia, a etimologia (sua origem) e coisa e tal. Terminado “Dom Casmurro” e apaixonado pelo jeito com que Machado deixou a trama tanto quanto inconclusiva – afinal, Capitu era a dona do enigma -, “baixo” em meu simplíssimo aparelho, por uns R$ 6 ou cousa (volvendo e aprendendo a lição!) que o valha, o célebre Esaú e Jacó, em que dois irmãos gêmeos têm a história contada desde a gravidez materna até as disputas físicas e políticas. Em Esaú e Jacó, li também que um “coupé” dava voltas em Botafogo, mas que diabo haveria de ser um coupé? Claro, algum tipo de veículo, lembrei-me dos calhambeques Ford. Mas, em meados dos anos 1870, no Rio, em plena escravatura, Ford? Lembrei-me das aulas de francês com o prof. “Feijão”, e de algum texto que falava em “couper les chéveux” (cortar os cabelos). Daí, “coupé” seria cortado, retinho, e, associando, o “coupé” de Machado seria um tipo de coche (dicionário, por favor). Vencida a batalha, abri o Houaiss, e vi que era realmente uma pequena charrete fechada para apenas duas pessoas, puxada por um ou dois cavalos. Bingo!
Machadianamente, outro salto atrás para meus tempos de estudo de música. Tive uma coleção com as partes completas para orquestra de Mozart, Haydn, Weber, Bach, Beethoven, Strauss, tudo com ligaduras (curvas unindo as notas) e dedilhados (qual dedo usar em cada nota), tudo bem questionável, como meu professor dizia. Mas por que fizeram isso, perguntei, ao que ele me respondeu que sem essas adições o material seria “apenas” Beethoven, coisa de domínio público, portanto sem direito autoral a ser pago. E as marcações do Zimmermann, perguntei, e ele falou que é justamente com elas que o “autor” ganha dinheiro.
Agora, nossa coda (“cauda”, final): Machado de Assis é de domínio público (morreu há bem mais de 70 anos), portanto a única forma de alguém ganhar dinheiro em cima será alterar o texto. Para isso, basta trocar palavras como “sagacidade” por “esperteza”, mesmo que as duas não sejam bem sinônimas. Escolas receberão 600 mil exemplares simplificados, para engambelar ao invés de “desasnar” (termo machadiano) os alunos. No Brasil, a tortura ao Machado, nosso maior escritor, se faz às nossas expensas, nossos impostos, sem consultar ninguém, sejam professores, especialistas, a ABL (a “casa” de Machado!). Pensemos um mínimo de preço de custo por exemplar de R$ 25, mais todas as outras despesas, bufês de lançamento, e tal. Faça o cálculo, leitor. A mim, já dói o suficiente ver nossa literatura encolhida, pasteurizada, e, por que não, vilipendiada; pior de tudo, nossos filhos e netos condenados a vocabulário de smartphone. Triste. Ah, o nome da “autora” desse Machado de segunda classe é Patrícia Secco. Logo estará em programas de TV, ou quem sabe ancorando algum telejornal. Aos professores, por não terem obrigação, e em nome da nossa língua, resta implorar para que continuem usando o original.