Na ampla sala da casa, um sofá e uma poltrona estavam colocados próximos das duas janelas que davam para uma varanda enorme, bem ao lado do jardim, que foi tão bem cuidado por vovó Dadá. Ela havia falecido há pouco tempo, mas ainda não tinham desaparecidos todos os sinais de sua presença naquela casa. A arrumação da sala, os cristais na cristaleira, tudo lembrava vovó.
A elegante mesa de jantar, feita com uma madeira escura, ficava no meio da sala, com algumas de suas cadeiras. Outras cadeiras ficavam estrategicamente colocadas na sala, prontas para o uso, quando necessárias. Quando era preciso, puxava-se o tampo da mesa para as pontas e surgiam duas outras partes guardadas em seu interior, que serviam para ampliar a extensão do tampo.
Era uma mesa para dez lugares. Nos dias comuns, em que não haviam convidados, o jantar era servido na copa, em outra mesa enorme, mas com estilo mais simples. Lembro-me que, enquanto vovó Dadá era viva, aos domingos à tardinha íamos lá saborear uma canja de galinha. Reuniam-se os Almeida Mello de Tatuí: tio Pedro, tia Julia, tia Dalila, vovó Dadá e outros mais.
A reunião começava e terminava na saleta do piano. Todos os Almeida Mello eram músicos, pois o patriarca dos Mello, meu bisavô Theodoto, ensinou todos seus muitos filhos tocar um instrumento. Uns até forçadamente. Na saleta, o piano alemão não parava de tocar. Uma plaqueta de latão informava sua marca e a origem: Föster, de Leipzig. Isso tudo aos domingos. É importante lembrar que, nessa época, o sábado também era “dia útil” e o descanso semanal acontecia apenas aos domingos.
Mas nos dias de semana, o jantar tinha sempre que sair antes das 18 horas, todos os dias, na época em que eu morava junto de meu avô Tonico. O rigor do horário tinha uma razão: o rádio. Esse era o meio de comunicação mais popular e, também, o sonho de consumo do passado. Todos desejavam ter um aparelho de rádio em sua casa. Músicas e notícias o dia todo.
Vovô Tonico interessava-se pela política desde os tempos do Partido Republicano Paulista (PRP), extinto após o golpe de Getúlio Vargas, que assumiu a presidência no lugar do eleito Júlio Prestes, nascido na vizinha Itapetininga.
Então, o jantar era sempre servido nesse horário porque às 18h30 começava o programa em que o prefeito da época, Olívio Junqueira, falava a respeito das atividades da prefeitura. Essa foi uma ocasião em que a cidade de Tatuí esteve dividida em duas irreconciliáveis facções políticas, entre junqueiristas e lisboístas (João Baptista Lisboa). Vovô era contra o Junqueira, mas queria saber de tudo pelo rádio.
Logo depois, às 19h00, os acordes de “O Guarani” enchiam a casa, anunciando que estava começando a “Voz do Brasil”, um programa imposto por Vargas, imitando o presidente norte-americano Roosevelt, com o seu “Conversas à Lareira”. Vovô não perdia nenhum programa. Escutava toda aquela aparentemente interminável ladainha de leis, projetos, etc. e tal para se informar das notícias. Além disso, ainda havia o “Repórter Esso”, com as notícias de todo o país.
Vovô estava um tanto surdo, nessa época com quase 80 anos e, por isso, o danado rádio ficava em um volume alto demais. Ele sentava-se na poltrona que ficava ao lado do rádio e, com uma das mãos, fazia uma concha para ampliar o som. Mas tinha que ser assim, caso contrário ele não ouvia direito.
Ah, eu tinha paciência de esperar toda essa programação, que me parecia horrorosa, porque, logo depois, começavam as aventuras de Jerônimo, o Herói do Sertão, que, juntamente com seu companheiro Moleque Saci, enfrentava os mais temíveis inimigos pelo interior do Brasil.
Era uma novela radiofônica criada em 1953, influenciada pelos faroestes norte-americanos, e que, depois de algum tempo, se transformou em uma revista em quadrinhos, filme e também adaptada para a televisão, pela TV Tupi.
Ah, eu adorava aquela radionovela de aventuras. Os mais esquisitos e perigosos inimigos, foras da lei, por mais artimanhas que tentassem, eram sempre vencidos por Jerônimo, que contava somente com o auxilio do Moleque Saci para defender a justiça e a lei nos sertões brasileiros. Sempre com patrocínio de Melhoral, diga-se de passagem!
Até hoje os belos acordes compostos por Carlos Gomes em “O Guarani” fazem avivar a lembrança daquela época. Da mesma forma, a visão de um aparelho de rádio dessa época me faz recordar do General Electric da casa de vovô Tonico, de Jerônimo, o Herói do Sertão, e me remetem àquela sala.
Lembranças de uma época que se foi, com exceção da sempre monótona “Voz do Brasil”, que permanece intocável, apesar de que quase ninguém ouve rádio nesse horário, completamente substituído pela televisão.
Mas isso já é outra história…