Seria até cômico – não estivesse o país atravessando grave crise institucional a ameaçar a democracia -, de repente, invocar a “liberdade de expressão” para garantir o direito de pedir o fim dessa mesma “liberdade”. Se parece algo incoerente, é por ser mesmo. (E isto em meio a uma pandemia que já soma mais de 30 mil mortes!).
Contudo, a despeito da ironia, trata-se de um dos maiores valores da democracia: o direito de todos terem opinião, sem sofrerem qualquer repressão do estado, sem serem calados, seja pela prévia censura, prisão, tortura e, eventualmente, morte.
O contrassenso está, portanto, no princípio basilar de que a democracia permite a livre expressão de maneira generalizada, o que lhe mantém como vidraça a pedradas, ao passo que qualquer estado não democrático jamais aceita críticas – não por acaso, tendo como um dos maiores sustentáculos justamente o extermínio de qualquer oposição, ainda que por mera “opinião” contrária.
Não seria custoso intuir, por conseguinte, que movimentos antidemocráticos – somente permitidos pela democracia – são uma das armadilhas a seus próprios promotores, os quais, se conseguissem de fato seu intento, estariam presos ao novo regime de exceção, pois sobre ele perderiam o direito de opinar, muito menos o de criticar, restando-lhes apenas a oportunidade de aplaudir e lamber botas…
Muito oportuno, assim, poder evocar-se o Dia da Imprensa, celebrado neste 1º de junho, para pôr em ampla discussão tanto o papel da profissão de (bem) informar quanto o próprio direito do cidadão de ser (bem) informado.
E isto, evidentemente, em ênfase ainda maior dadas as manipulações políticas que buscam confundir, de maneira sórdida e sorrateira, as chamadas fake news com as liberdades de expressão e informação.
Do ponto de vista da imprensa, quase não há motivo para comemoração, a se considerar as ofensas constantes, as agressões – muitas vezes, até físicas -, as acusações sem fundamento e a antiga prática – sectária – de se culpar o carteiro pela mensagem da correspondência.
Não obstante, após muito tempo, houve um vislumbre da fragilidade do atual amadorismo na comunicação – bem notado em grande parte quanto aos chamados influenciadores digitais, os quais, praticamente, desapareceram diante da primeira grande crise a exigir respostas adultas e confiáveis.
Neste aspecto, a imprensa não precisou fazer nada além do que lhe é esperado, embora o suficiente para ser novamente reconhecida como essencial e importante serviço de utilidade pública. Ou seja, tem informado, com responsabilidade e profissionalismo. Nisto, tem o que celebrar.
Quanto à confusão em que a imprensa se encontra também no epicentro, sobre fatos e falsidades, é absolutamente sagrado diferenciar várias questões. A primeira, de que, moral e legalmente, é inadiável reiterar e defender a liberdade de expressão, conforme preconizado no artigo 5º da Constituição.
Aponta a Carta Magna: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. E segue: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença…”.
Ou seja, caso alguém defenda algo em contrário, está, sem dúvida, agindo a favor de um golpe, pela tal “ruptura institucional”, por ser exatamente a Constituição a maior garantidora do Estado Democrático de Direito, em que se assegura a liberdade de expressão.
Enquanto houver democracia, por certo, não deixará de existir espaço às opiniões, ainda que as mais idiotas e contrárias ao próprio regime que garante o direito, até, à expressão de idiotices.
A partir disso, deve-se observar as questões em específico. Uma delas implica em que o humor se enquadra no direito à liberdade de expressão. Não se trata de notícia, mas de sátira, que deve ser passiva e resignadamente absorvida pelas figuras públicas, como ônus por suas condições de evidência.
Ou seja, ninguém é obrigado a ser candidato a cargo público, a tornar-se um músico de sucesso, um esportista famoso… Se assim ocorre, essas figuras ganham notoriedade e, com ela, uma série de benefícios, mas não só: também precisam aceitar críticas e “gozações”, sim, senhor!
Os aspectos mais delicados da polêmica do momento, entretanto, não estão nesta instância, mas no embaralhar de conceitos que buscam maquiar as mentiras como se fossem opiniões.
Portanto, vale um exercício prático, até para simplificar a situação. Nele, uma mesma ocorrência será posta de três formas diversas e você, leitor, avalia como as interpreta, se como um fato, uma opinião ou uma mentira.
Tomamos como base um caso real, acontecido em Tatuí e noticiado por O Progresso na semana passada – nada incomum, infelizmente: um jovem foi preso, acusado de tráfico de drogas. O nome dele foi divulgado, conforme deve ocorrer (por ser direito de todos à informação) e segundo a Constituição (que permite essa informação).
Então, a primeira maneira de se abordar o ocorrido: a reportagem registra que o jovem foi preso, acusado de traficar drogas, permanecendo retido, sem direito a fiança, inclusive. Isso seria o quê? Fato, “fake” ou uma opinião? Na verdade, não “seria” nada, “é” um fato. E ponto!
Ao jornalismo profissional, cabe parar aí – ressalte-se. Salvo se tratar de alguma coluna de opinião, assinada, o texto deve ater-se ao ocorrido. E, novamente, ponto!
Mas, lá em uma rede social, vai um cidadão e publica o seguinte: “Eu acho que esse fulano, que já foi detido várias vezes, deveria ter uma mão cortada, como faz o Estado Islâmico com os supostos bandidos…”.
Ok, ninguém precisa concordar, mas se trata de quê? Sim, de uma “opinião” do indivíduo, também assegurada pela Constituição. E… ponto!
Outro enfoque: um segundo “internauta” usa de todo o farto saber dele para acrescentar à notícia um comentário, de que o acusado de tráfico, segundo “ficou sabendo, também já matou duas menores de idade depois de estuprá-las…”. Isto, então, seria o quê? Um crime cujo direito inexiste na Constituição? Sim, senhor!
O que se discute quando o assunto é punir fake news, portanto, não é se as piadas serão proibidas ou se as pessoas não podem mais dizer o que pensam e preferem – mesmo que seja viver sob porretadas de uma ditadura, sem liberdade, sem direito a voto -, mas se é legal inventar obscenidades e as propagar pela internet impunemente.
A partir do “inquérito das fake news”, sob a responsabilidade do tatuiano Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, o que se quer saber – do ponto de vista da imprensa e de toda a sociedade bem intencionada -, finalmente, é se o povo brasileiro ainda vai continuar a ser estuprado com mentiras e manipulações golpistas, promovidas por meio da rede mundial de conspiradores. E ponto… final!