Da reportagem
“A população de Tatuí precisa se conscientizar sobre o registro de BO (boletim de ocorrência)”, defende o delegado titular do município, José Luiz Teixeira.
A O Progresso, o responsável pela PC (Polícia Civil) da cidade argumenta que existe um “lado sistemático e muito cultural” a respeito do documento. “Até os juízes no fórum comentam muito isso”, inicia.
Teixeira ressalta que a PC recebe muitos casos de pessoas que procuram a instituição para registrar reclamações, sendo a maioria no plantão. São queixas das mais variadas possíveis e que não têm urgência ou necessidade de serem registradas.
Entre as mais comuns, estão as de ex-mulheres ou ex-maridos que têm guarda compartilhada. A maioria procura o plantão alegando que os “ex” não entregam as crianças na hora combinada.
Donos de granja também vão à delegacia para informar queda de energia elétrica. Neste caso, os proprietários querem comunicar o caso por escrito, para fins de ressarcimento.
Entretanto, o delegado explica que, em situações como os dos granjeiros, boa parte das questões nem precisaria de registro. “As pessoas querem fazer o boletim porque não leem no papel da concessionária que o boletim não é obrigatório”, conta.
Além disto, nas contas, as companhias costumam informar as programações (datas e horários) de desligamentos para fins de manutenção.
Como não há essa atenção por parte dos usuários, somado ao hábito de procurar a polícia, o resultado é um número muito grande de pessoas no plantão. “Não posso ficar usando o recurso que tenho para fazer um serviço de cartório”, diz Teixeira.
De acordo com ele, não é função da PC registrar boletim de interrupção de transmissão de energia elétrica por queda de árvore ou chuva.
“É obrigatório quando um bandido atira no transformador para assaltar uma propriedade, leva o transformador embora, ou corta o fio para furtar e vender como sucata. Isto é crime. Aí, é obrigatório; mas, caso contrário, não”, acrescenta.
O delegado argumenta que a PC teria condições de efetivar todos os registros sem demora para os usuários e com mais segurança para a população se houvesse recursos extras, como efetivo, além de equipamentos.
Além de sobrecarregar os funcionários, a procura desnecessária pode causar vulnerabilidade. Isto porque o cidadão que queira ser atendido para comunicar um caso não criminal pode ter de dividir o espaço de espera com suspeitos.
Por outro lado, os boletins de queixas interferem no andamento dos trabalhos. “Se tiver um caso de estupro na família, alguém vai querer ficar parado, esperando o funcionário registrar o boletim de falta de energia em granja?”, indagou.
Qualquer que sejam os casos (criminais ou não criminais), os registros são realizados. Entretanto, Teixeira ressalta ser preciso ter bom-senso.
O delegado conta que há muitos casos de pessoas que procuram o plantão para comunicar situações de desentendimento (“desinteligência”, no jargão policial).
“Há pessoas que vêm aqui, meia-noite, para fazer boletim porque a mulher não quer entregar o filho no final de semana e um fica ameaçando o outro. Não é motivo para vir a um plantão, deixar quatro cidades esperando, viaturas paradas na porta para ficar fazendo boletim de desentendimento”, enfatiza.
O plantão de Tatuí atende as cidades de Cerquilho, Cesário Lange, Capela do Alto e Quadra.
No entendimento do delegado, medidas como essa “não ajudam na pacificação da sociedade”. Pelo contrário, “acirram as diferenças entre as pessoas”. “Coloca mais lenha na fogueira, porque um vem aqui, faz o BO e vai esfregar na cara do outro. E as pessoas ficam multiplicando boletins, enquanto uma guarnição que está com um flagrante tem que ficar esperando”, diz.
Além de aumentar o volume de trabalho no plantão e nos cartórios de redistribuição dos boletins, os registros desnecessários de casos não criminais interferem no trabalho da Polícia Militar e da Guarda Civil Municipal.
Isto porque, quando uma mulher grávida ou uma pessoa maior de 60 anos vai ao plantão para registrar queixas sem urgência, elas têm prioridade.
Embora nem todos se tornem inquéritos, os boletins registrados tomam tempo da Polícia Civil. De um determinado número de BOs por ano, a estimativa é que pouco mais de 10% virem inquérito e uns 2% gerem condenação, “o que pode dar falsa impressão de que a Polícia Civil trabalha mal”, argumenta o delegado.
Contudo, o restante dos registros permanece no SIG (Setor de Investigações Gerais). “Fica lá ‘ad aeternum’ (para sempre, no jargão jurídico)”, explica Teixeira. Segundo o delegado, enquanto a polícia não descobrir a autoria, não pode arquivar.
Outra parte dos boletins que fica parada no setor de investigação diz respeito à preservação de direitos, o que, na prática, é uma declaração unilateral.
Em Tatuí, Teixeira afirma que o volume de ocorrências é grande. Apesar de não divulgar o total de registros, o delegado ressalta que muitos deles não precisariam ser comunicados, pois tratam de preservação de direito. Os demais registros não criminais são de morte suspeita e pessoas desaparecidas.
“A Polícia Civil existe para investigar crime. É isso que ela tem que fazer. Eu estaria sendo irresponsável se parasse de investigar crime para ficar fazendo boletim de cartório. Não tem sentido. E isso acontece em todo lugar”, destaca.
Teixeira explica que os boletins de ocorrência têm somente duas destinações: arquivamento por não ser fato típico (caso da maioria dos registros) e abertura de inquérito. Na segunda hipótese, o caso vira uma apuração formalizada.
Nas comunicações sem elementos para investigação, os casos ficam abertos para sempre. “O CPB (Código Penal Brasileiro) fala que, sempre que surgirem novas provas, a investigação deve reiniciar. O crime não pode ficar impune”, frisa.
As exceções são as prescrições. Crimes de furto “caducam” após 25 anos, mesmo se o autor for conhecido, mas não puder ser localizado, porque não há qualificação.
Teixeira explica que, nestas situações, o caso não vira um inquérito propriamente dito porque as autoridades não têm a qualificação correta do acusado.
“Às vezes, ele é arquivado porque não chegou a contento em uma denominação, uma comprovação na prova de autoria e materialidade, e aqueles que têm tudo isso, esses viram processos perante o fórum”, especifica.
O delegado reforça ser preciso conscientização por parte da população. De acordo com ele, o plantão policial (que funciona no período da noite e aos finais de semana) serve para comunicação de fatos graves e, em geral, flagrantes.
Além disso, o efetivo precisa concentrar-se no levantamento de crimes, no aprimoramento das investigações e dar continuidade aos trabalhos iniciados pela equipe diária.
Segundo o delegado, em casos não urgentes, a população pode fazer uso do boletim eletrônico de ocorrência. Entretanto, este tipo de registro também “incha” a estatística da PC. A explicação é que, em muitos casos, o que se quer comunicar é a perda de um documento para fins de emissão de 2a via sem pagamento de taxa.
Como tem a mesma validade que o impresso, o boletim eletrônico precisa ser despachado da mesma forma que o de papel. E, como o de celulose, demanda serviços que não precisariam existir. “Dos 5.000 boletins registrados por ano, era para cair para uns 3.500. O resto é papel sem valor nenhum”, diz.
Desde que assumiu a titularidade, Teixeira informa que a ordem dada por ele é para registrar, independentemente da natureza da queixa. Contudo, o delegado ressalta ser preciso esclarecer que boletins de perda são somente uma declaração. Sem falar que, quando o furto é na verdade uma perda de documento, a impressão que se passa é de que a corporação “não está sendo eficiente”.