Os leitores que costumam acompanhar a coluna de registros policiais do jornal O Progresso certamente já notaram o volume excepcional de casos de violência doméstica em Tatuí, os quais, desdobram-se, muitas vezes, em situações que, não fossem dramas reais, poderiam servir de base a comédias nonsense.
Exemplos rápidos neste sentido podem ser episódios recentemente divulgados, em que o marido chegou bêbado em casa, pediu R$ 300 à mulher para beber mais e, sem o dinheiro, bateu nela.
Ou o de um indivíduo que, não aceitando a separação, instalou uma câmera no quarto da ex-mulher para vigiá-la e teria acabado até por abusar da filha dela.
Ou, ainda, o de outro “ex”, que, por aplicativo, enviava ameaças de morte à ex-mulher e até para o celular de um filho, ainda criança e que sofre de depressão e síndrome do pânico.
Ou mesmo o de um outro marido, que bateu na esposa porque, quando ela chegou do supermercado, pediu que ele a ajudasse a “tirar as compras do carro”….
De tantas situações irracionais, poderia advir a dedução de que as agressões ganharam corpo nos últimos anos, dado o aumento progressivo de ocorrências formalizadas em boletins pelas polícias militar e civil, particularmente nas Delegacias da Mulher.
Porém, nem isso está claro, sendo mais prudente o entendimento de que, na verdade, não foram os casos que aumentaram em números, mas, sim, a segurança garantida às mulheres agredidas, as quais podem se valer não só das delegacias especializadas, mas, sobretudo, de uma legislação específica que as protege: a Lei Maria da Penha.
Em outro exemplo, apenas para posicionar as gerações mais novas – distantes de uma época inacreditavelmente a instigar saudosismo a muitos -, bater em mulher era quase um “direito” do homem, dada a rotina com que acontecia sem qualquer punição.
Agora, não! Tornou-se finalmente crime! Mesmo assim, por qual motivo seguem as agressões, ainda grassando de forma tão volumosa e desenvolta?
Um dos motivos, pode-se arriscar o apontamento, é o velho machismo, de tal forma intrínseco em boa parte dos homens que os leva a entender que as mulheres lhes pertencem, podendo ser castigadas quando não lhes presta os “serviços” esperados.
Esse sentimento parece ser tão enraizado no “ser macho humano” que, em alguns momentos, pode até arrefecer, mas nunca desaparece. Pelo contrário, quando há períodos de surto de intolerância, ódio e ignorância, o “instinto” animalesco desperta com ainda mais fúria, pronto a expressar sua macheza covarde por meio da violência.
Em nada contribui, por conseguinte, quando quem mais deveria dar exemplo de civilidade mostra-se também sedimentando em preconceitos, rusticidades intelectuais e valores extremistas de alto teor hipócrita.
Neste sentido, um belo exemplo de má postura é abordado pela promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos, presidente do Instituto Brasileiro de Atenção Integral à Vítima (Pró-Vítima), especialista em “Interesses Difusos e Coletivos” e idealizadora do Estatuto da Vítima, da Lei de Importunação Sexual e do projeto estadual 130/2016, de igualdade plena de homens e mulheres.
Pelo artigo intitulado “As mulheres estão correndo atrás de homem?”, ela apresenta uma série de ponderações que merecem ser observadas e servir de reflexão:
“Há poucos dias, o país ficou estarrecido com a fala de um desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR): ‘Quem está correndo atrás de homem são as mulheres’. Como se não bastasse, a frase, absurda e abjeta, foi proferida durante julgamento da necessidade de a Justiça manter medida protetiva a uma estudante, de 12 anos, por possível assédio sexual por parte de um professor.
O episódio gerou a instauração de processo disciplinar e o corregedor-geral da Justiça, ministro Luís Felipe Salomão, determinou, em caráter liminar, o afastamento cautelar imediato do desembargador do plenário:
‘Não há dúvidas, até aqui, de que as manifestações do reclamado reforçam preconceitos, pré-julgamentos e estereótipos de gênero, como se mulheres fossem criaturas dependentes de aprovação, aceitação e desejo masculino’, afirmou Salomão, que também sugeriu a prática do crime de violência institucional contra a vítima.
Tal tipo de crime constitui o ato de submeter vítimas e infrações penais e testemunhas a procedimentos desnecessários, invasivos, repetitivos ou que as levem a reviver, sem necessidade, situações de sofrimento – a revitimização.
Seria este um caso isolado? Ou teríamos, ainda, muito que evoluir como sociedade e operadores do Direito (advogados, juízes, promotores, defensores públicos, procuradores etc.) na proteção às vítimas de crimes e de atos infracionais, notadamente, nos casos em que a perpetuação de estereótipos de gênero e a estigmatização estejam envolvidas?
Em 23 de maio, o país também assistiu, perplexo, por maioria de votos na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), a negativa de concessão de urgência ao Estatuto da Vítima (projeto de lei 3.890/2020), sob a alegação de que o projeto ‘confere uma gama indevida de proteção aos coletivos vulneráveis de nossa sociedade’.
Ao que parece, para os parlamentares que votaram contra a matéria, mulheres, idosos, crianças e vítimas de catástrofes climáticas não merecem ser reconhecidos como dignos de proteção do Estado brasileiro.
A revitimização pode ocorrer em processos judiciais, assim como possível existência de juízos preconcebidos. Por isso, a sociedade precisa intensificar seu olhar com a perspectiva de gênero para hipóteses em que o crime, ou a situação traumática, não se apresenta tão evidente. Integrar a perspectiva da vítima nos processos judiciais é um imperativo para que se possa falar em desenvolvimento sustentável.
Pergunto aos leitores: a resposta penal do Estado tem sido proporcional ao sentimento que a sociedade, hoje, tem em relação a condutas que prejudicam o pleno desenvolvimento, inclusive sexual, de crianças e de adolescentes? A sociedade brasileira, nos dias atuais, é acolhedora para vítimas adolescentes?
Penso que as respostas a essas indagações demonstram, lamentavelmente, o longo caminho que ainda precisamos percorrer na proteção das atuais e das futuras gerações.”
A promotora tem razão, não ganhando o reconhecimento apenas de quem, apesar de a civilização já não usar mais como condomínios as cavernas há milênios, ainda não se desenvolveu “como ser humano”, seguindo lá com seu instinto animal em preponderância, seja por ignorância, estímulo político ou mau-caratismo mesmo.
A questão por se levar em consideração, afinal, é que, se a humanidade tem um longo caminho a seguir, ele precisaria estar apontando justamente para a luz de uma civilização em desenvolvimento, não à obscuridade de eras medievais do passado.
Algo é certo, pelo menos: não é na porrada que se educa, que se desenvolvem sociedades com real bem-estar, tampouco como se deve tratar crianças, idosos e mulheres. Isso é coisa de troglodita, seja vestido com peles de animais ou toga.