Velho sim, obsoleto não!





Não sei quem é o autor da frase, mas procurei saber (sem alusão aos velhos de hoje que tentam guardar para si as biografias de suas juventudes). Mas o que vem a ser obsoleto? Segundo o Houaiss, a palavra vem do latim “obsoltus”, “deteriorado”, “estragado com o tempo”. Durante o ano em que estudei desenho industrial, antes de me mudar de vez para a música, aprendi uma expressão que me causou certo estupor, típica de uma sociedade que produz para vasto consumo, enriquecendo muito poucos: a “obsolescência calculada”. Trocando em miúdos, você fabrica um produto, e pode fazê-lo durar por muito tempo – mas por que é que eu vou vender uma lâmpada que pode durar dez anos, se posso criar outra, que não dura dois?

Agora, o que tem isso a ver com a velhice? No “Estadão” de segunda-feira, 25/11 (pág. B1), um sorridente Ueze Zhran, poderoso dono da Copagaz, decreta, do alto de seus 89 anos: “Eu não tenho tempo para morrer agora”. A artista plástica japonesa naturalizada brasileira Tomie Ohtake acaba de completar cem anos de idade, e é uma figura simpática de grande notoriedade. Oscar Niemeyer (1907-2012) morreu aos 105 anos, sempre trabalhando, submetendo-se à sua própria visão da arquitetura, do universo e da ciência, poetando: “Não é o ângulo reto o que me atrai, nem a linha reta (…) criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso de seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito o universo”.

Charlie Chaplin (1889-1977), ícone do cinema universal, faleceu aos 88, ainda sob os aplausos de público e crítica, que o considerava o maior cineasta de todos os tempos. Deixou para trás a perseguição ao povo judeu e ainda foi tido como comunista durante o macarthismo americano – apesar de o artista ter sido apenas um esquerdista crítico do capitalismo americano, e longe de fazer mal a quem quer que seja. Sofreu, foi homem de vários casamentos e relacionamentos (geralmente com mulheres bem mais jovens) e teve 11 filhos, base de sua resistência.  Suas ideias foram sempre inovadoras, e à frente de seu tempo. Tornar-se obsoleto o teria feito sucumbir à morte mais cedo.

O grande Dave Brubeck (1920-2012), um dos maiores pianistas de jazz americanos, completou seus 90 anos tocando por longa hora e meia no Blue Note, um espaço sagrado entre os músicos americanos. Criou o superhit “Take Five” em compasso “quebrado” de cinco tempos, entre outras obras-primas. Charles Aznavour (nome artístico), francês de origem armênia, compôs mais de 850 canções e participou de 60 filmes. Seu vozeirão “de peito” arrancava suspiros das mulheres e tornava qualquer jantar a dois nas melhores casas de shows de Paris um grande acontecimento. Deixou marcada sua “Que C’est Triste Venice” (Como é Triste Veneza) por gerações de apaixonados.

Pierre Boulez (1925), vanguardista francês, ainda atua em diversas áreas, na bagagem uma extensa lista de composições de técnicas moderníssimas e passagem como regente titular de orquestras como a Filarmônica de Nova Iorque e a BBC de Londres. Também fundou um grupo chamado “Ensemble Intercontemporaine” – que tive a honra de receber em São Paulo –, tão irreverente quanto a música que fazia. Sir Georg Solti (1912, Hungria, 1997, Inglaterra) era um cidadão do mundo. Fugiu de Budapeste (1939) depois da anexação da Hungria pela Áustria, e foi regente da Orquestra de Paris e da Filarmônica de Londres, além de uma brilhante estada na Sinfônica de Chicago, cujo som moldou a seu gosto: volume de sopros inimitável e as cordas brilhantes, criando a identidade do grupo entre os mais importantes do mundo. A milésima performance de Solti à frente da CSO foi programada para seus 85 anos. Morreu de infarto fulminante, talvez da forma que queria, sem nunca se aposentar. Tanto confiava em sua longevidade que, ao ser chamado para renovar contrato com sinfônica, aos 80, negou-se a fazê-lo por apenas dez anos, exigindo o prazo de 20 anos.

A grande diva do piano brasileiro Magdalena Tagliaferro (1893-1986), que aos 13 anos de idade apenas encantou Debussy e o Conservatório de Paris logo em sua chegada à França, recebeu, aos 80 anos, um apartamento do governo francês, para que morasse em comodato por 20 anos. Chorou copiosamente: “Como é que eu vou fazer depois, meu Deus”?

Ficar velho desfrutando da sabedoria é um dom que esses grandes nomes souberam e sabem aproveitar. O pior é andar na contramão, involuindo, ao invés de evoluir. Existem os que tentam reescrever a história da juventude nazista, como os skinheads, e os falsos niilistas-anarquistas, que inflam de vazios as cabeças dos blackblocs – exemplos perfeitos de involução histórica.

Os mecanismos de controle da sociedade têm que avançar junto com o aperfeiçoamento da organização do estado. Os vícios públicos brasileiros levaram há dias uma autoridade com sólida formação intelectual a declarar que “o culpado pela corrupção é o sistema eleitoral” (sic). “Culpa do sistema eleitoral” é anedota, mas talvez seja ele que abre as portas para os desvios de dinheiros públicos, juntamente com o sistema fiscal, o sistema financeiro, a burocracia estatal… É esse o tipo de homem obsoleto que se curva ao “sistema”, que culpa mas venera, pois que é a cortina que obstrui do país a visão da cena e dos atores, é o pano de boca que os separa da plateia, palco da burocracia infernal por trás de cujos bastidores os obsoletos se dão as mãos em uma bacanal particular.