Vacinar ou não: eis a questão

Um movimento antivacina já recebeu duro golpe nos Estados Unidos e reacendeu, na época, a discussão sobre vacinação infantil. A edição de setembro de 2016 da revista da Academia Americana de Pediatria trouxe mais um esforço das autoridades contra o movimento antivacina.

A partir de então, pediatras norte-americanos podem se recusar a atender pais com filhos não imunizados. A resolução foi uma tentativa de constranger famílias a imunizar as crianças e reacende um velho debate: vacinar faz bem ou mal?

A grande maioria dos médicos tem calafrios ao ouvir essa pergunta. Hoje, a ciência considera a vacina como um dos maiores avanços na história da saúde.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2 milhões a 3 milhões de vidas são salvas anualmente com a vacinação. “É uma das intervenções de saúde pública mais eficientes e com maior êxito”, diz a instituição.

Como política pública, a imunização é essencial para erradicar doenças endêmicas e reduzir a mortalidade infantil, explica Carla Domingues, na época, coordenadora do Programa Nacional de Vacinação do Ministério da Saúde. “Antes, tínhamos milhares de óbitos e casos de crianças com sequelas. Havia, na época, enfermarias especiais apenas para pólio, por exemplo. Hoje, você não vê mais isso”, afirma.

Segundo a OMS, a mortalidade mundial por sarampo caiu em 74% de 2000 a 2010, graças à intensificação das campanhas de vacinação. Já a incidência de pólio diminuiu 99% entre 1998 e 2010.

Apesar dos números, o assunto é inesgotável. Há, basicamente, três motivações por trás da recusa em vacinar os filhos. A primeira, religiosa (“Deus deve decidir se meu filho adoece ou não”). A segunda busca evitar a “artificialidade” da vacina (mesmo que ela seja produzida com base em um agente da natureza, como fragmentos de vírus e bactérias). Os pais pensam: “Meu filho não terá a doença tal”.

A terceira, por fim, questiona o lobby da indústria farmacêutica e teme supostas reações adversas, em um leque que vai do autismo à narcolepsia.

Outras vezes, temos visto uma inversão de valores em relação às vacinas que são aplicadas somente nas clínicas particulares, sendo que alguns pais acham isso um “gasto” desnecessário. Porém, alertamos: vacina aplicada é um investimento e não gasto. Ela pode salvar vidas. E eu pergunto: quanto custa uma vida?

Você já deve ter ouvido algum pai ou mãe comentar quanto à possibilidade de uma vacina causar desde a própria doença a ser combatida até enfermidades mais complicadas, como autismo ou síndrome de Guillain-Barré (reação exagerada do sistema imunológico a um estímulo).

Isto se deve, sobretudo, ao médico britânico Andrew Wakefield. Em 1998, ele espantou a comunidade científica com um estudo publicado na prestigiadíssima revista científica “The Lancet”. Ele analisou 12 crianças portadoras de autismo, das quais oito manifestaram os primeiros sintomas da síndrome apenas duas semanas após tomarem a tríplice viral, que protege contra caxumba, sarampo e rubéola.

Conforme Wakefield, o sistema imunológico delas entrou em “pane” após os estímulos “excessivos” da vacina ao sistema imunológico. Resultado: uma inflamação do intestino que levou toxinas ao cérebro. Os resultados apareceram em jornais e tevês do mundo inteiro.

No entanto, uma série de investigações descobriu que algumas crianças voluntárias haviam sido indicadas por um escritório de advocacia interessado em entrar com ações contra a indústria farmacêutica. Em 2010, a “The Lancet” retirou o estudo de seu site. No mesmo ano, o Conselho Britânico de Medicina cassou a licença de Wakefield e ele não pôde mais atender qualquer paciente.

Antivacina no Brasil

Nos Estados Unidos e na Europa, o movimento é relativamente forte – muito, porque a vacinação é feita em clínicas privadas e fica a cargo dos pais, o que, de certa forma, retira da equação os agentes de saúde e seu trabalho de conscientização. Nos Estados Unidos, por exemplo, quase todos os Estados liberam crianças das vacinas por motivos religiosos. No Brasil, contudo, a agitação ainda é incipiente.

“Temos visto esses questionamentos aumentarem, mas os pais ainda vacinam. Raramente há uma recusa. Aqui, é mais comum o esquecimento do que a recusa”, explica Alessandra Michelin, na época, coordenadora do Comitê de Vacinações da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

O motivo para a adesão mais forte na terra brasilis é simples: uma ampla política pública que inclui vacinar de graça a população e explicar, desde o pré-natal da mãe, a importância de imunizar o bebê.

Assim, a cultura de proteção passa de mãe para filho. Isso ocorre desde 1976, quando foi instituído o Programa Nacional de Vacinação, que assegurou a oferta gratuita de doses pelo SUS e passou a obrigar os pais a imunizarem os filhos. Logo após nascer e antes de sair do hospital, por exemplo, o bebê nascido no Brasil precisa ter recebido injeções contra BCG e Hepatite B.

O trabalho vem dando resultados. Desde a instituição do Programa Nacional de Vacinação, pólio e febre amarela foram erradicadas no país. O Ministério da Saúde aplica, hoje, as 11 vacinas essenciais em cerca de 95% das crianças até nove anos: BCG, rotavírus, pneumocócica, meningocócica, tetra ou penta, poliomelite, tríplice viral doses 1 e 2, hepatites A e B, e febre amarela.

Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” (06/09/2016).

Médico especialista em pediatria pela SBP e AMB, membro da SBIM (Sociedade Brasileira de Imunizações).