Era costume entre os luteranos dos tempos de Johann Sebastian Bach que os enfermos se despedissem da família, amigos e vida terrena no recesso de suas próprias casas. Não foi diferente com ele, em 1750, no segundo andar da Thomasschule, em sua cama. Suas condições físicas já estavam comprometidas pela apoplexia, ele sequer enxergava, apenas imaginava sua estrada terminando logo à sua frente. Confortavam-no orações, pequenos corais, um cravo ou clavicórdio, instrumentos de sons suaves e celestiais. Não se tem certeza sobre se a obra que citarei foi apenas uma revisão ou uma composição ditada pelo mestre a um de seus filhos, nota por nota, linha por linha, ritmo por ritmo. A letra é de pura devoção ao Pai, e a autoria é de Lutero. Leva o título de “Vor deinem Thron tret ich hiermit”, e o texto pode ser livremente traduzido como “Diante de vosso trono eu agora me apresento, oh, Deus, e humildemente vos suplico que não afaste vosso generoso rosto de mim, pobre pecador”. Anotações no manuscrito, de um jeito ou outro, levam a creditar este trabalho musical ao genro Johann Christoph.
Bem antes disso, Bach havia composto outro coral, intitulado “Alle Menschen müssen sterben”, “Todos os homens deverão morrer”. Aceitação do destino, do inexorável, da única certeza que temos quando vivos, pergunta maior do fundo da alma humana, vazio em que todas as filosofias pecam por gerar mais dúvidas do que certezas: o que é a existência? Nascer é a condição maior sem a qual nada existiria. Nos corais de Bach, há o sentido de devoção e resignação, diante do verdadeiro porquê da vida: o pessimismo de apenas viver (Schopenhauer), ser não deixar de existir (Sartre), viver pelo prazer (hedonismo) ou a negação de tudo (niilismo). Mas ainda servir a Deus, deixar uma contribuição, entre tantas outras coisas.
Maria Lucia Christo Autran Dourado nasceu em 1928, em Belo Horizonte. Filha de um militar sistemático e ultracatólico, reformado como general, José Carlos Campos Christo, constitucionalista, filho do cel. Vieira Christo, que acompanhou Artur Bernardes dos governos de Minas e da República até o exílio. Meu avô não hesitou em preparar seu batalhão de infantaria contra Getúlio Vargas. Minha mãe odiava o ditador desde que, criança, ficara um ano e meio longe de seu pai, deportado e depois exilado na Europa. Minha avó Lilia era uma pessoa dócil mas rigorosa, talvez um pouco áspera pelos anos durante os quais, sozinha, foi chefe de família com prole de quatro filhos, mais uma após o exílio, três a seguir e duas falecidas ainda bem pequenas. De minha avó, generosamente, minha mãe herdou os olhos claros, traço da invasão neerlandesa ao Brasil no século 17, tempos em que Nassau deixou um legado cultural, arquitetônico e artístico sem precedentes no Recife. Pois diante daquele azul fustigante dos olhos maternos não se conseguia mentir, nada escapava, eles tudo viam! Dela, recebi os olhos mais claros, mas o meu netinho inglês, Tommy, herdou o mesmo azul celeste que, quem sabe, passará a quem o descender. Como os profundos “ole blue eyes”, “velhos olhos azuis”, alcunha de Frank Sinatra.
Difícil dizer o quanto nossa mãe sofreu durante a ditadura de Getúlio, obrigada aos insuportáveis desfiles cívicos e discursos de apelo fascista que era obrigada a enfrentar e ouvir ainda pequena, até a saudação forçada ao homem que tanto fizera sofrer seu próprio pai! Difícil imaginar a labuta de educar seus filhos com esmero, acompanhando seu marido, jovem e futuro grande escritor, como as estrelas pareciam ter-lhe escrito desde cedo. Logo, iriam para o Rio de Janeiro, onde meu pai haveria de assumir aos vinte e tantos anos de idade um alto cargo na República, sendo dele seu primeiro titular na história. Um trabalho estressante, o de secretário de imprensa (hoje porta-voz) de JK, cuja missão era responder por um mineiro visionário, cercado por escritores e intelectuais. E ainda sofreria, como tantos, o medo das prisões de artistas e intelectuais durante o regime pós-64.
Dona de casa guerreira e intelectualizada, leitora compulsiva quando havia tempo, compartilhou da melhor intelectualidade do Rio de Janeiro, cidade onde com meu pai ficou após a mudança da capital para Brasília, em 1960, minha mãe dedicou-se a educar os quatro filhos dando de si muito mais do que podia e do que o salário de meu pai, serventuário da Justiça do Estado do Rio, poderia dispor, fazendo-o suficiente para a família.
No dia 23 de novembro passado, data do falecimento de sua mãe Lilia e, consta, no mesmo horário e em condições absolutamente semelhantes, diante do fado inegociável, o destino, terminou por entregar-se. Aos filhos restou a serenidade diante do que seria um desejo já manifesto, àquela altura obviamente irreversível e já maturado pelo tempo. Humildemente, acatou os impenetráveis desígnios de Deus, e assim foi a despedida da sua presença física, apesar de aquela chama ainda estar acesa em todos os que com ela tiveram a enorme bênção de conviver.
Peço vênia ao Gonzaguinha para citar uma de suas letras mais inteligentes, que bem exemplifica o mundo que nossa mãe nos deixou, e no final evocar as palavras do poeta carioca, uma reverência aos memoráveis anos de que todos com ela desfrutamos: “Nas avenidas as buzinas gritam alto a nova explosão / numa vitrine está à mostra seu novo tipo de coração / é o progresso em nossa mão, viva a civilização! / Um abraço terno em você, viu, mãe?