Cultura não era assunto para um governador paraibano do passado. Revoltado com seu antecessor Tarcísio Burity (anos 80), que adorava música de concerto, Wilson Braga, recém-empossado naquela capitania, indagado sobre a manutenção da Orquestra Sinfônica respondeu que não era chegado ao ramo, preferia criar uma “sanfônica”. Para completar, teria dito, na época: “Num dô dois conto pra tócador di bumbo!” Burity, o mecenas paraibano, quase foi assassinado a tiros pelo seu sucessor em um restaurante de João Pessoa em 1994. Sanfona versus sinfonia, no fundo palavras tão afins, para nós, viraram bandeira de guerra na política do coroné.
Por volta de 1968/69, éramos estudantes secundaristas no Rio de Janeiro. Em período de violenta repressão e censura, organizamos um festival de música estudantil – coisa inédita para aépoca, especialmente considerando a repercussão que o evento obteve junto à imprensa. O regime de exceção havia conseguido coisas impossíveis: escolados na doutrina jesuíta – que tinha entre seus iniciados de Santo Inácio deLoyola ao líder Fidel Castro, levou-nos a discutir posições nos instrumentos e na política. Na verdade, continuaríamos uma tradição musical, já que o Mário Henrique Simonsen (ex-ministro, barítono e crítico bissexto) e Edu Lobo (1943), entre outros, já haviam aberto o caminho no colégio.
Dez anos depois de Edu, formaram-se grupos, festivais, e das fileiras do colégio brotaram o violonista Marcos Farina, do conjunto de choro Galo Preto, Ricardo Medeiros, contrabaixista e arranjador, Ricardo Chaves, guitarrista radicado desde sempre nos Estados Unidos, o grupo O Terço eLuís Maurício Pragana dos Santos, de quem falarei logo adiante – além do Cazuza, depois o Lobão, mais novos do que nós. Maurício Villela tornou-se jornalista, o violonista Marcos Caramuru foi assessor de Zélia Cardoso de Mello e Pedro Malan, enquanto o compositor Luis Eduardo Soares, o “Motor”, sociólogo e secretário de segurança de Anthony Garotinho, governador do Rio empossado em 1999 (Luís virou escândalo ao ter seus telefones grampeados por setores da polícia. Queria reformar o conceito de segurança, mas teve de fugir para os EUA).
De volta dos Estados Unidos, em 1982, reencontrei Luís Maurício Pragana no bondinho de Santa Teresa, bairro pós-hippie como o Greenwich Village. Após um curto papo, Luís pareceu indignado quando lhe perguntei se ainda fazia música: é que eu não sabia que ele havia largado seu conjunto Veludo Elétrico e se ungido Lulu Santos, e menos ainda que seus temas românticos abriam a novela das oito. Mesmo comercial, seu conhecimento musical dos Beatles levou a um disco-music que não era bate-estaca, eracoisa de qualidade. Filho de almirante, no colégio era meio caído pela direita. Hoje, é vermelhaço (ou escarlate, casou-se com a Scarlet Moon).
A orientação do colégio era rígida, na mais pura tradição jesuíta. Decorávamos “Última flor do Lácio, inculta e bela, és a um tempo esplendor e sepultura”, o discurso de Gettisburgh, do Lincoln (“four scores and seven years ago”) e as capitais e rios do mundo todo. Foram-se países e capitais e uma ou outra catarata, mas ficaram os ensinamentos. Assistíamos à missa, na última aula de sexta-feira, mas se quiséssemos poderíamos ir para salões enormes, em silêncio e com um livro na frente o dobro do tempo da celebração. Às vezes, íamos à Igreja, e quando o padre se virava para o altar, levantando a hóstia sagrada, fugíamos pelos fundos.
No colégio representávamos Becket, líamos Marcuse, Althusser, Reich e Leandro Konder, mesmo sem entender muita coisa. E ouvíamos Caetano, Gil, Chico e Vandré. A música era uma válvula de escape, canal para mandarmos nossos recados. Ea censura prévia fazia cortes idiotas, como no meu “um grito vivo de verdade”. Seria a frase um chamado à guerrilha?Só eram do agrado do poder Os Incríveis, de “eu te amo, meu Brasil, eu te amo, meu coração é verde, amarelo, branco e azul-anil” (nós cantávamos: “E quem não ama vai…”). Há que se reconhecer, entretanto, que a ditadura abriu brechas para nossa criatividade e verdadeira especialização em criar mensagens subliminares, de duplo e até triplo sentido. A poesia era a metáfora metrificada!
Nos anos 70, fora nomeado interventor no Instituto Villa-Lobos da Fefierj do Rio de Janeiro (hoje Unirio) o general Jaime Ribeiro da Graça. Escolado na “inteligência” do SNI, nosso diretor era versado em jargões de “subversivos e drogados” (que, como se propalava, eram tentáculos do “plano de Moscou para cooptar a juventude”). Graça ministrava cursos na Escola Superior de Guerra e havia publicado um ou dois livros com exemplos de diálogos entre bichos-grilos: “Oi, cara, tá numa boa?” Respondia o outro: “Tô numa pior, gente boa, preciso descolar algum”. E ainda se fazia música com um barulho desses.
O prédio da Fefierj era o da então proscrita UNE, símbolo proibido e posteriormente demolido pelo governo. O edifício parecia a eles uma ameaça de recrutamentoda sadia juventude carioca para as hostes soviéticas. O general Graça mandava revistar frequentemente os alunos em suas calças, meias e cabelos; os policiais à porta da escola buscavam baseados de maconha ou, se dessem mais sorte, livros de capa vermelha, mesmo que fosse a “Nova História da Música”, do Carpeaux. Seguiam à risca o corolário do chefe de polícia do filme “Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”, de Elio Petri: “Repressão é Civilização” (“repressione è civiltà”).