Da reportagem
Em meio à pandemia da Covid-19 e à quarentena – medida de isolamento social adotada pelo governo do estado para evitar a propagação da doença -, crianças e adolescentes correm risco de estarem mais expostos a situações de violência, conforme alertam órgãos da Justiça.
De acordo com relatório da Vara de Infância e da Juventude de Tatuí, o número de processos por estupro de vulnerável recebido durante a quarentena foi duas vezes maior que no mesmo período do ano passado no município.
De 13 de março a 21 de maio de 2019, o Poder Judiciário tatuiano recebeu quatro processos por violência sexual infantil, enquanto, no mesmo período deste ano, o número saltou para oito denúncias.
O volume também é crescente na comparação entre o saldo do ano. De 8 de janeiro a 21 de maio de 2019, a Justiça atendeu oito casos do tipo; já no mesmo período deste ano, foram 18 processos, índice que representa salto de 125% de um ano a outro.
O levantamento, feito a pedido de O Progresso, inclui todos os inquéritos policiais, prisões em flagrante e processos de ação penal por violência sexual infantil, recebidos nos últimos meses, no Poder Judiciário tatuiano.
O juiz da Vara da Infância e Juventude, Marcelo Nalesso Salmaso, ponderou que, apesar dos índices de Tatuí, em relação ao ano passado, mostrarem aumento, a taxa de processos por violência sexual começou a crescer no início deste ano.
Conforme o relatório apresentado pelo Judiciário, dos 18 processos apresentados em 2020, 11 foram iniciados entre 8 de janeiro e 9 de março – antes do período de quarentena – e outros sete, pós-pandemia.
Salmaso confirmou que o confinamento em casa acabou expondo essa população a uma maior incidência de violência doméstica, contudo, acentuou que outros fatores podem ter contribuído para o aumento dos números em Tatuí.
Para o magistrado, o Protocolo de Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência – lançado em maio de 2019 – e as campanhas de incentivo à denúncia, como o “Maio Laranja” (reportagem nesta edição), são os principais responsáveis pelos índices crescentes, por incentivarem a prática da denúncia.
As iniciativas são desenvolvidas pela Comissão de Combate à Violência Sexual Infantil, tida como “essencial” por ser composta pelo Poder Judiciário, Ministério Público, secretarias municipais (Educação, Saúde e Desenvolvimento Social), Conselho Tutelar, Guarda Civil Municipal, Polícia Civil e Polícia Militar.
Salmaso ressaltou que o protocolo reúne normas e um fluxo de procedimentos para estruturação padronizada do atendimento e acompanhamento de diferentes situações envolvendo violência sexual.
O magistrado apontou que um dos objetivos do fluxo é poder levar ao sistema de justiça criminal as informações necessárias para que o agressor seja responsabilizado.
Ele destaca que, neste sentido, o grupo que trabalhou na construção do material pensou em preservar as pessoas que denunciam a situação de violência, para que possam levar a informação de abuso ao sistema de justiça sem sofrer retaliações.
“O protocolo prevê um formulário, que é preenchido pela entidade que recebe a denúncia. Ninguém, a não ser o sistema de Justiça, tem acesso a este formulário. A entidade só é identificada no inquérito, por um código, e só é reconhecido pelas pessoas que atuam na rede”, informou o juiz.
Para a elaboração do fluxo, o magistrado conta terem sido necessárias diversas etapas, reuniões e debates para o estudo e compreensão dos fluxos internos das principais instituições.
“Muitas vezes, escolas, UBSs, casas de acolhimento e outras instituições, que chamamos de portas de entrada, se deparavam com denúncias e não sabiam como proceder. Com este trabalho, padronizamos o fluxo passo a passo, até chegar ao sistema de justiça para uma eventual responsabilização do agressor”, detalha o juiz.
Ainda sobre o protocolo, Salmaso acentuou que o trabalho desenvolvido foca na atenção à vítima da violência e não somente na punição do agressor. Para o juiz, esta posição faz do protocolo uma referência.
“A violência contra crianças e adolescentes sempre aconteceu. Por isso, acredito que não houve aumento de casos e atribuo os índices à criação do fluxo. Com ele, as entidades sabem o que fazer e têm segurança de que estarão protegidas quando esta informação for levada adiante”, completa Salmaso.
A ideia de montar um protocolo surgiu em 2017, após a realização da primeira campanha “Faça Bonito” – desenvolvida anualmente pelo Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, celebrado em 18 de maio.
Ao se trabalhar o tema em escolas, OSCs e Centros de Referência de Assistência Social, foram surgindo denúncias entre os participantes. Salmaso afirma que a necessidade de atendimento levou a organização a perceber que o município não estava preparado para esse tipo de demanda.
Como resultado, a comissão criou uma espécie de manual, que propõe corresponsabilidade por parte de cada um dos integrantes do chamado “Sistema de Garantias de Direitos”. Cada órgão é identificado por uma letra, na qual é descrita a função do setor e quais os procedimentos inerentes a cada um deles.
Segundo o magistrado, na cartilha também constam explicações sobre as diversas formas de violência (física, psicológica, institucional e sexual); a diferença entre suspeita e indício; o que fazer diante de uma possível situação de abuso sexual; além dos contatos (telefone, endereço e horário de funcionamento) de toda a rede envolvida.
“Com tudo isso, as pessoas se sentem mais confortáveis e seguras para levar essa informação adiante e sabem o que fazer. Além disso, existe também uma maior divulgação de informações para que as pessoas denunciem este tipo de prática. Por isso, muitas questões estão aparecendo um pouco mais”, completou Salmaso.
Mesmo não atribuindo o aumento dos números à quarentena, o juiz reforça existir preocupação neste sentido. Prova disso é o foco da campanha Maio Amarelo, que, neste ano, é voltada à violência sexual infantil no contexto do isolamento social.
Além disso, os números mundiais sugerem aumento nos próximos três meses. Um relatório da organização não governamental World Vision estima que até 85 milhões de crianças e adolescentes, entre 2 e 17 anos, poderão se somar às vítimas de violência nos próximos três meses em todo o planeta. O número representa aumento de 20% a 32% da média anual das estatísticas oficiais.
O levantamento incluiu a revisão de indicadores emergentes de violência contra crianças, como relatórios de aumento de violência doméstica, crescimento do número de denúncias por telefone, informações dos escritórios de campo e estimativas feitas com base em epidemias anteriores.
No caso do Brasil, a projeção é de aumento de 18% no volume de denúncias de violência doméstica. Esse aumento deve chegar a 75% no Chile, 50% no Líbano e 21,5% nos Estados Unidos.