Foram exatamente 723.719 escravos libertos pela Lei Áurea assinada pela princesa regente Isabel, filha do imperador Dom Pedro II que, nesta ocasião, viajava pela Europa. A lei que aboliu a escravidão no Brasil continha apenas dois singelos artigos e foi rubricada com uma pena especialmente confeccionada para exprimir a generosidade da realeza, cujo regime agonizava diante da República que se aproximava.
Os primeiros africanos escravizados desembarcaram no Brasil no ano 1538 e, consequentemente, deu início ao sistema escravista, que por sua vez, muito intimamente associado ao lucrativo tráfico Atlântico de escravos. Dos aproximados 500 anos da História do Brasil, claro, levando em conta a chegada do português Pedro Álvares Cabral, até a Lei Áurea, somam 350 anos de trabalho compulsório escravo. Três séculos e meio de cativeiro deixaram consequências brutais, a ferida originada pela escravidão ainda se encontra aberta provocando espasmos dolorosos no tecido social brasileiro.
Numa visão tradicional da história da escravidão no Brasil, enfatizam-se dois estereótipos com perfis antagônicos: “o escravo dócil” e “o escravo arredio”. Uma concepção maniqueísta acerca do comportamento do escravo. Como se o bem e o mal ambientassem de forma reducionista e simplificada os séculos de trabalhos forçados. Dois personagens deixam esta visão muito marcada no imaginário de todos: Pai João e Zumbi dos Palmares.
A figura mística de Pai João, negro bondoso e humilde, que, em sua longa vida praticava a “mandinga”, ou seja, benzia as agruras dos aflitos. Sentado, de pernas cruzadas, pitando seu cachimbo, lançava baforadas mágicas com o intuito de gerar alguma atmosfera harmoniosa que levaria à solução dos tormentos alheios. Em certos momentos, era chamado de “Preto Velho”, que, através de seu dom milagroso, transita, ainda hoje, em inúmeras manifestações religiosas de matriz africana, é o símbolo da docilidade, da cordialidade e da bondade do negro e, pelos quatro cantos, desfruta da aceitação popular.
A figura emblemática que sintetiza a rebeldia dos escravos tem o nome de Zumbi. Morto em 20 de novembro de 1695, teve sua cabeça decepada e fincada numa estaca com seu pênis enfiado na boca. A crueldade, além da necessidade de gerar exemplo aos demais escravos para que não caíssem na tentação da fuga ou da rebelião, revela outra trama pedagógica, sinalizar sua possível homossexualidade, segundo pesquisas históricas. Último líder do maior e mais importante quilombo existente durante a escravidão (atual, interior do Estado de Alagoas) foi destruído por uma expedição comandada pelo bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, contratado por senhores de engenho do Nordeste.
Zumbi dos Palmares se tornou um herói da resistência do negro contra a opulência dos senhores. Referência da luta por direitos do povo negro do Brasil até nossos dias, vide o Dia da Consciência Negra.
Contudo, a visão binária lançada sobre os cativos, isto é, de um lado o negro submisso e de outro o indolente, faz da história da escravidão uma história incompleta, mutilada e repleta de preconceitos. Deve-se levar adiante, ao debruçar sobre o tema, as múltiplas faces das relações humanas, relativizar as angústias e os desejos presentes no embate entre escravos e não escravos, a correlação de forças entre aqueles que empunham a chibata e aqueles que desejam a sobrevivência, a negociação constante entre os personagens principais e os coadjuvantes do sistema escravista no Brasil.
A cantoria e o batuque na senzala que originaram o samba, a substituição de Iemanjá pela Nossa Senhora nas orações diante dos senhores, o jeito carregado de ginga e sotaques ao falar e usar as palavras contribuindo para a formação da identidade de nosso povo, os odores e sabores à partir dos restos descartados pela casa grande fez surgir uma culinária típica e pitoresca que restaura as forças, o afeto entre a mucama e o sinhozinho ao amamentar e ensinar os modos, a habilidade ladina na busca de alguma dignidade diante da ferocidade do feitor, na sexualidade e no erotismo exaltados pelos corpos de ébano e muito mais, são amostras da complexidade dos dramas existentes na condição humana.
Entender ou ao menos tentar entender a essência humana através dos relacionamentos, das narrativas e dos repertórios construídos ao longo do tempo permite lançar luz na história da escravidão no Brasil. Há muito mais entre o céu e aterra, ou melhor, entre a “Casagrande e a Senzala” do que a vã imaginação é capaz de contar.
A Rua 13 de Maio de 1888 não é uma mera rua em algum canto da cidade, é caminho, direção e sentido.